"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

janeiro 29, 2013

LENIÊNCIA TEM PREÇO ! AOS "BRASILEIROS" QUE SÃO SÓ SOLIDÁRIOS NO CÂNCER : Boate Kiss e o 'lado b' do Brasil


As consequências imediatas da tragédia de Santa Maria devem se dar no terreno mesmo das providências para apurar causas e responsabilidades da catástrofe. 

Neste sentido, o poder público, em todas as instâncias cujos órgãos se relacionam com o incêndio na Boate Kiss, deve dar curso à imperiosa obrigação, moral e legal, de levar às últimas consequências o inquérito sobre o episódio.

Nele, irresponsabilidades, leniência e falta de senso se misturaram para provocar uma madrugada de horror em que mais de 230 jovens morreram, e na qual outra centena está entre o risco de falecer e carregar pelo resto da vida sequelas físicas e/ou psicológicas.

Inquéritos são uma obrigação policial, mas provê-los não é iniciativa suficiente para dar respostas a uma tragédia que ficará marcada na história do país.

Primeiro, e o mais óbvio, porque nenhuma providência, em termos de medidas legais ou administrativas, que se tome agora será capaz de reparar a dor das famílias dos jovens que tiveram a vida interrompida de forma tão estúpida e dolorosa.

Segundo, porque a gravidade da tragédia, e de todas as circunstâncias que a ela parecem ter levado, impõe que se avance muito além da formal apuração de culpas e, mesmo, da condenação dos responsáveis.

É preciso haver consciência, para além do que aconteceu na madrugada de domingo, que há no país uma rede - em que se entrelaçam inépcia administrativa, 
corrupção, 
omissão do poder público 
e conformismo do cidadão comum - responsável por enlutar o país. 
Muitas vezes, no varejo, como nos acidentes de estrada nos feriadões. 

A tragédia de Santa Maria impõe à sociedade uma séria reflexão sobre a cultura nacional da leniência, do descaso, da corrupção (em suas duas faces, a do corruptor e a do corrompido, bem como em todas as suas dimensões, desde a propina com que se compra o perdão do guarda da esquina até os grandes golpes contra o Erário).

É preciso partir do princípio de que, nessa questão, o mea culpa cabe a todos: agentes públicos, proprietários de estabelecimentos que rebarbam normas de segurança, cidadãos comuns que igualmente as desprezem (inclusive em atentado contra seus direitos).

Um ponto a ser liminarmente refutado é que teria havido uma "fatalidade" em Santa Maria. 
Não houve. 

O noticiário está cheio de evidências de que diversas causas, no terreno das responsabilidades humanas, contribuíram para o desastre. 

Crer em "destino" não ajuda o país a rever procedimentos danosos, enraizados na cultura nacional, que contribuíram para fazer da Kiss o emblema de um acontecimento que se alinha entre os mais funestos do mundo, comparável a incêndios como o que em 2004 matou quase 200 pessoas na Argentina, e o que provocou a morte de outras 300 na China, em 2000 - ambos também em boates.

Em tudo, das causas às consequências, Santa Maria é a trágica expressão do "lado b" do Brasil.

O Globo
Boate Kiss e o 'lado b' do Brasil

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