"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

janeiro 14, 2011

"No lugar dos valores da vida, preferiu-se o poder, o sucesso e a riqueza por si mesmos".

Quem analisa o século passado, da urbanização mundial, encontra um traço profético nessa afirmação do "pai da psicanálise".

No Brasil, o desenvolvimento econômico também tem se baseado na exacerbação da cultura individualista e na degradação da esfera pública.
Mas não há progresso real se não se supera a desigualdade e o atraso político.
Nesses aspectos essenciais continuamos mal.


Entre nós, onde os 10% mais ricos ainda ganham 40 vezes mais que os 10% mais pobres, o abismo social ganha tom de tragédia:
enlutados, vejamos a condição da maioria absoluta dos vitimados nas enchentes.

Não se culpe o destino ou uma fatalista "ira divina", e sim a falta de prioridade para políticas públicas que poderiam amenizar essa dor indizível.

Não se atribua tudo a fenômenos naturais, alguns de fato inéditos.
O imprescindível planejamento urbano raramente desce de virtuosas Leis Orgânicas, Planos Diretores e Estatuto das Cidades para a vida.

Os insuficientes investimentos em macrodrenagens, contenções e programas habitacionais contrastam com os custos adicionais bilionários da reforma do recém-reformado Maracanã, por exemplo.
No plano global, as políticas contra o aquecimento, que implicariam em mudanças drásticas do modo de produzir e consumir, não avançam com a celeridade das crescentes oscilações climáticas.

O país emergente que celebra crescimento tem sua dimensão política soterrada pela avalanche do interesse menor, alimentado pela enchente do desinteresse coletivo.
A comovente e episódica onda de solidariedade não tem se transformado em torrente cidadã permanente.

Promessas de prevenção das autoridades vão embora com as águas de março ou fecham-se após as chuvas de abril.

Ocupar função pública, salvo exceções, não é mais missão de serviço e sim carreira promissora, inclusive com plano de vencimentos e oportunidades de negócios. Muitos no Executivo, no Legislativo e no Judiciário distanciam-se da sociedade, fechados em estamentos que se autorregulam e tornam-se espaço de interesses privados.

A moeda de troca nas alianças políticas é a distribuição de cargos e empenhos para consolidação dos "currais" modernos de legitimação pelo voto - até nos recursos para a Defesa Civil!

Os palácios só costumam ter alguma conexão com as praças quando ocorrem tragédias ou nos períodos bienais de captação de votos. Hannah Arendt lembrava que "a sociedade burguesa, baseada na competição e no consumismo, gerou apatia e hostilidade em relação à vida pública, não somente entre os excluídos, mas também entre elementos da própria burguesia".

Desde os primórdios os povos enfrentam dois desafios:
adequar-se à natureza, para não perecer, e limitar o poder, para as maiorias não serem escravizadas.

Caminhamos entre intenções cruzadistas e suas guerras nada santas, entre avanços tecnológicos que propiciariam o bem viver e relações de dominação que excluem amplos setores desses benefícios.

É imperativo o resgate da vida pública cooperativa, transparente, participativa. Res publica livre do interesse mercantil e/ou demagógico - inclusive em relação ao solo urbano.
As mortes que se repetem a cada ano nos interpelam de forma dramática.


Chico Alencar / O Globo
Governo, negócios e... tragédias

NÃO É A CHUVA QUE DEVE IR PARA A CADEIA.

Das surpresas do clima quem pode falar por todos os políticos com conhecimento de causa são os faraós egípcios.
Eles, como o ex-presidente Lula, agiam como enviados do céu à terra.
E, ao contrário do ex-presidente Lula, não falam desde que saíram de cena, a não ser por intermédio de escribas e hieroglifos.

Mas, como encarnações do sol, se o sol fracassava lá em cima eram arrancados do trono cá embaixo, surrados e cuspidos no fundo do Nilo. Tudo porque o rio deixava de inundar o delta que nutria seu reino agrícola. Lá, o regime político mudava conforme o regime do rio. Tornava-se violento e insurreto até o Nilo voltar à normalidade, irrigando uma nova dinastia.

As vítimas dessas tragédias políticas e climáticas não tinham, na época, como saber que as cheias do Nilo eram regidas pelas chuvas de monção do Sudeste Asiático, que por sua vez dependiam de ventos conjurados pela temperatura das águas no Oceano Pacífico, do outro lado da terra, na costa da América do Sul, um lugar mais distante que o sol do cotidiano egípcio.

O culpado da desordem era um fenômeno natural que só entrou há duas décadas no noticiário internacional, com o nome de El Niño. Mas deixar o clima fazer seus estragos à solta, em Tebas ou Menfis, tinha custo político, porque da regularidade do rio dependiam vidas humanas.

O preço era injusto, cruel e exorbitante.
Como é injusto, e talvez seja também cruel e exorbitante, que hoje não se processe no Brasil, por homicídio culposo, o político que patrocina baixas evitáveis e supérfluas em encostas carcomidas e vales entulhados por ocupações criminosas.

No dia em que um prefeito, olhando as nuvens no horizonte, enxergar a mais remota possibilidade de ir para a cadeia pelas mortes que poderia impedir e incentivou, as cidades brasileiras deixariam aos poucos de ser quase todas, como são, feias, vulneráveis e decrépitas.

De graça, ou com o dinheiro virtual do PAC, os políticos não consertarão nunca a desordem que os elege.

Não adianta ameaçá-los com ações contra o Estado ou a administração pública, porque o Estado e a administração pública, na hora de pagar a conta, somos nós, os contribuintes.
O remédio é responsabilizar homens públicos como pessoas físicas pelos crimes que cometem contra a vida. Às vezes em série, como acaba de acontecer na Região Serrana do Rio de Janeiro.

O resto é conversa fiada.
Ou, pior, papo de verão em voo de helicóptero, que nessas ocasiões poupa às autoridades até o incômodo de sujar os sapatos na lama. Pobres faraós.
O longo e virtuoso caminho civilizatório que nos separa de seu linchamento está nos levando de volta à impunidade anárquica das entressafras dinásticas, quando a favelização lambia até as suntuosas muralhas de Luxor.

Linchar um político não é a mesma coisa que malhar seus projetos. E os brasileiros estão perdendo mais uma chance de bater com força no projeto de lei número 1.876/99, que o deputado Aldo Rabelo transfigurou, para enquadrar o Código Florestal nos princípios do fato consumado.

Ele reduz à metade as áreas de preservação em margens de rio, dispensa da reserva legal propriedades pequenas ou médias e consolida os desmatamentos ilegais.

Nunca foi tão fácil saber aonde ele quer chegar com isso, folheando as fotografias aéreas das avalanches em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo.
Dá para ver nas imagens o que havia antes nos pontos mais atingidos.

É o que o novo Código Florestal vai produzir no campo.
Mais disso.
Marcos Sá Corrêa O Globo