"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

fevereiro 20, 2011

TREM PARA O PASSADO.

O governo anunciou corte de R$ 50 bilhões no Orçamento, mas circulam notícias de que ele vai transferir para BNDES mais R$ 55 bilhões.

Faz mais um cruzamento de ações dentro das estatais:

ações da Eletrobras e da Petrobras foram dadas para capitalizar o BNDES, para o banco emprestar mais, e para ajudar a Caixa Econômica, que entrou numa enrascada panamericana.

A lista das trapalhadas, truques contábeis, ou “orçamento paralelo”, como bem definiu no seu brilhante artigo o professor Rogério Werneck, parece interminável.
Elas me suscitam duas dúvidas. Primeiro, o governo sabe o risco que o país corre?
Segundo, onde está a oposição?

O petismo entrou no trem da estabilidade monetária na última estação.
Não viu o que aconteceu antes.
O PSDB não pode alegar desconhecimento: conhece cada parada do caminho.
Ele sabe quanto custou descruzar ações de empresas estatais, desfazer o novelo de dívidas cruzadas e caloteadas entre entes do setor público, o risco de um orçamento paralelo.

O PSDB abriu os armários onde estavam os esqueletos e os tirou de lá.
Sabe o quanto a inflação baixa depende do saneamento básico das contas públicas.
Ele é passageiro desse trem desde a primeira estação.

Uma das frases animadoras do começo do governo Lula foi a do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Ele prometeu que o governo não erraria erros velhos.
Hoje, já se sabe que sim, eles souberam cometer erros novos, mas voltaram, infelizmente, aos velhos. Esse descuido fiscal é velhíssimo.
Foi com ele que o Brasil construiu as bases daquela superinflação crônica.

O governo Dilma poderia iniciar um novo tempo, mas neste ponto nem parece ter havido mudança de governo. Há uma desconfortável continuidade. E isso se viu na última semana, nessa nova troca de ações e no silêncio eloquente em relação à desastrada operação da Caixa Econômica Federal.

Saiu o balanço do banco PanAmericano e ele não deixa dúvidas:
a CEF fez o pior negócio da sua vida quando criou o CaixaPar e decidiu entrar nesse banco furado. Deu R$ 780 milhões, em 2009, por metade de um banco que hoje revela ter fechado 2010 com um patrimônio de R$ 178 milhões.

Ela deu R$ 8,76 em cada R$ 1 de patrimônio que comprou.
Vamos esquecer que o banco revelou também um rombo de R$ 4,3 bilhões, sendo que R$ 3,8 bilhões foram cobertos com aquele maravilhoso empréstimo dos bancões que controlam o Fundo Garantidor de Crédito.
Os bancos emprestaram primeiro sem juros, depois aceitaram quitar a divida por 15% do seu valor e liberaram as garantias dadas pelo tomador.

Foi realmente um momento lindo: bancos bonzinhos.
Nunca antes, jamais com o devedor comum. É bem verdade que fizeram bondade com o chapéu alheio, já que todo o custo de capitalização do fundo é repassado pelos bancos ao distinto público.
Mas esse banco sem fundo que a Caixa comprou, e nem viu a qualidade dos ativos, precisará de mais dinheiro para operar.
Aí é que entra o Tesouro.
Dá para a Caixa, a titulo de capitalização, ações das empresas da Petrobras e da Eletrobras.

Ao BNDES, o governo parece não ter limites nas suas concessões.
Primeiro, fez sucessivos “empréstimos” que ultrapassam R$ 200 bilhões. E a palavra empréstimos está entre aspas porque essa foi a fórmula criativa para não dizer que o dinheiro era aporte de capital.
Se o fizesse, teria que entrar na conta da dívida líquida porque ele lançou títulos no mercado para dar o dinheiro ao BNDES.
Há rumores de que fará novo “empréstimo” de R$ 55 bilhões.

No ano passado, o BNDES adiantou ao Tesouro um dinheiro que o governo teria a receber da Eletrobrás. Foi a compra de dividendos futuros.
Foi uma das várias operações feitas pelo Ministério da Fazenda para aumentar o superávit primário.

Em outro momento, o BNDES foi usado na capitalização da Petrobras. Ajuda essencial.
O governo transferiu dinheiro para o banco que comprou ações na capitalização.
A Petrobras devolveu o dinheiro e ele entrou nas contas como superávit primário.

Foi um momento mágico.

Pena que não foi suficiente para se atingir a meta de superávit primário no ano em que a arrecadação cresceu de forma estonteante.

Agora, o governo capitalizou o BNDES com R$ 6,6 bilhões de ações da Petrobras e Eletrobras. Assim, o banco poderá emprestar mais, porque o que se empresta tem que ser um múltiplo dos ativos. E para quem o banco empresta? Há boas operações, há operações arriscadas e há as péssimas.

Uma arriscada vai ter um capítulo final nos próximos dias quando os credores disserem o que acontecerá com o frigorífico Independência. O banco comprou ações e emprestou dinheiro para o frigorífico que pode ir simplesmente à falência.

Em algumas péssimas, o BNDES empresta para o próprio governo, ou para empreendimentos que o governo controla direta ou indiretamente, como o trem-bala e a hidrelétrica de Belo Monte.

No trem-bala, haverá uma estatal e investidores privados. O empréstimo será dado com a garantia do Tesouro. Já o Tesouro terá como garantia as receitas do empreendimento, que, se fracassar, não terá receitas suficientes.

Enfim, mesmo sendo passageiro da última estação da estabilização da economia, o governo já viajou o suficiente para saber que o que anda fazendo pode descarrilar esse trem.

Fico então apenas com a última dúvida:

onde está a oposição brasileira?

Na democracia, a oposição tem o fundamental papel de apontar os erros e os riscos e ter um projeto alternativo.

Míriam Leitão/O GLOBO

O BRASIL POR TRÁS DOS PANOS : “Números oficiais não refletem realidade das contas públicas”

Um dos principais contribuintes do programa econômico do PSDB na eleição de 2010, o economista Gesner Oliveira nega que a proposta de um salário mínimo de R$ 600, derrotada na Câmara na semana passada, seja demagógica.
"Deve ser vista em conjunto com propostas muito mais audaciosas de corte de gastos", afirmou ao Estado.

Presidente da Sabesp na administração José Serra em São Paulo e presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) na gestão FHC, avalia que o corte orçamentário de R$ 50 bilhões anunciado pela equipe econômica foi "insuficiente" e diz não haver credibilidade nas estatísticas fiscais feitas pelo governo.

Qual avaliação faz do começo do governo Dilma Rousseff?

É prematura qualquer avaliação definitiva. Mas questões e dificuldades da economia persistem. Chamo a atenção para anomalias de um juro real elevado, carga tributária grande em comparação às economias emergentes e problema sério de competitividade associado à precariedade da infraestrutura. E a tendência forte da apreciação do câmbio. A combinação desses elementos é perversa. Não há sinais de como isso será atacado.

Apesar desse quadro, a economia está crescendo.

A economia, embora tenha desacelerado no último trimestre, apresenta sinais positivos. Houve avanços em vários segmentos: em políticas estaduais e também um empreendedorismo pujante. Mas a política econômica não acompanhou esses espaços e impede que o Brasil cresça de forma equilibrada. Muitas vezes, um movimento de expansão gera satisfação que encobre desequilíbrios sérios.
O debate fica mistificado em torno de uma ou duas questões, quando você precisa ver que há uma economia que funciona de maneira anômala. Qualquer médico percebe que esse organismo não está bom.
Não adianta crescer de qualquer maneira.


O corte de R$ 50 bilhões no Orçamento é um passo para uma política fiscal mais austera?

É insuficiente e não aborda a questão central da natureza qualitativa do problema: o nível e a composição dos gastos. É preciso não apenas pensar na redução do gasto, mas na redução qualitativa, cuja composição não prejudique investimentos e assegure a redução de despesas correntes.
Além disso, nos últimos anos, houve crescente perda de credibilidade nas estatísticas fiscais em função da chamada contabilidade criativa.


A capitalização do BNDES pelo Tesouro, por exemplo?

E também as inúmeras maneiras de artificialmente se elevar a receita e subestimar a piora nos números do superávit primário. Isso acaba diminuindo a credibilidade das contas fiscais. A maioria dos analistas passou a fazer contabilidade paralela porque os números do governo deixaram de refletir com fidedignidade a realidade das contas públicas brasileiras.

O sr. vê diferenças no receituário econômico de Dilma e Lula?

Do ponto de vista da política econômica, não houve grande novidade. Do ponto de vista da política externa, houve aparentemente mudanças no discurso, algumas de estilo. Na essência, não vejo grande alteração.

Como viu a aprovação do mínimo de R$ 545 na Câmara? O sr. participou do programa de governo do PSDB, que propôs R$ 600.
Alguns analistas acusaram a proposta de ser demagógica.


A proposta não pode ser vista separada de um ajuste fiscal forte. Faz parte de uma proposta global que agrega ajuste fiscal, eliminação de desperdícios e elevação do salário mínimo. Deve ser vista em conjunto com propostas muito mais audaciosas de corte de gastos e de eliminação de desperdícios.

Mas sem "propostas mais audaciosas de corte" os R$ 545 não seriam atitude mais prudente?

A proposta, para ser coerente, é global. Não pode ser vista separadamente, olhar o salário mínimo sem as estimativas de receita da Previdência, as possibilidades de racionalização de gasto.

A diminuição do ritmo de crescimento no último trimestre de 2010 torna a inflação menos preocupante neste ano?

É uma preocupação.
A composição da inflação é dura com os que ganham menos.
Estamos perto do teto, numa economia que já apresenta uma enorme anomalia, uma grande taxa de juro real. E há muito ruído nas informações oficiais.
Essa combinação gera preocupação.


Neste ano, entraram US$ 18 bilhões no País. O sr. defende mecanismos mais fortes para controle do capital externo?

Os Estados Unidos gerando volume grande de liquidez internacional, a situação peculiar de economias emergentes com boas perspectivas de expansão e as centrais com taxas mais tímidas geram fluxo forte.
Conceber mecanismos para atenuar isso é importante. Não é uma panaceia, mas é algo importante.


O sr. tem feito consultorias na área ambiental. A eleição trouxe para o debate político a agenda verde. Como vê o começo do governo Dilma neste setor?

A impressão que dá é que a discussão morreu. Quais as propostas do Brasil para uma economia de baixo carbono? A população deu sinal positivo na aprovação da agenda. Mas até agora não há sinal de que isso se traduza em políticas concretas.

“Números oficiais não refletem realidade das contas públicas”
Julia Duailibi/Estadão