"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

setembro 10, 2009

Judiciário

Produção de sentenças & Finalidade esquecida

Sob o título "Algo a ser dito, ainda que tardiamente", o artigo a seguir é de autoria do desembargador Augusto Francisco Mota Ferraz de Arruda, do Tribunal de Justiça de São Paulo, e foi publicado originalmente na Revista "Diálogos e Debates", da Escola Paulista da Magistratura:


A Sociedade capitalista. A sociedade capitalista funciona sob o regime de produção de bens e serviços que podem ser classificados, de modo geral, como mercadorias. Este sistema produtivo opera buscando maximizações como menor custo, menor tempo possível gasto na produção, maior eficiência e qualidade e maior lucratividade. Este regime de produção dominante nas sociedades capitalistas modernas, a despeito de ser fruto da racionalização do trabalho que possibilitou o desenvolvimento sócio-econômico em partes localizadas do mundo, tornou-se algo incontrolável, que funciona por si só e impõe que, de forma subliminar, toda a sociedade funcione da mesma forma. Ou seja, que tudo se subsuma aos princípios da utilidade e praticidade, incluindo a própria produção de idéias. Daí resultando que a vida em sociedade, a cada dia que passa, perde em profundidade e torna a existência humana superficial, automatizada e banalizada.


A sociedade opinativa. É mais ou menos perceptível que se vivemos sob o domínio da ideologia da produção ansiosa e irrefreável, tudo o que se pensa e o que se faz tem importância e significado público ou social desde que pertinente à superficialidade do modo de viver. Vive-se num mundo de aparências, de falsas verdades e enganosas certezas. Isso ocorre em virtude dos influxos e fluxos ideológicos e que sugerem soluções ou saídas casuísticas para as contradições sociais na medida em que estas vão acontecendo e com intensidade suficiente para despertar o interesse da opinião pública.


A sociedade fragmentada. Outra consequência desta sociedade é a fragmentação da vida em turmas, grupos, guetos, associações, agremiações. E os elos que ligam os respectivos membros entre si e lhes conferem identidade e individualidade são a profissão ou a paixão (sejam estas lícitas ou ilícitas, a paixão pelo time de futebol ou pelo jogo de azar), contribuindo para que as formas de enxergar a vida sejam estabelecidas a partir de olhares parciais, fragmentados e por isso mesmo privatizados.


A sociedade de especialistas. No campo do trabalho técnico ou profissional tudo se especializa de tal forma que o especialista é aquele que entende, é experiente e conhecedor abalizado daquele pouco. Sabe tudo sobre sua especialidade, mas, na realidade, nada conhece do todo social restante em que ele próprio está incluído.


A consequência. Uma sociedade opinativa, fragmentada e especializada é uma sociedade onde tudo que é pensado o é de maneira superficial, fugaz e particularizada. O mais paradoxal é que, por isso mesmo, ela assume a aparência de uma sociedade evoluída e altamente democrática, posto que pensa e age sob a certeza institucionalizada do “eu acho que”, trazendo como consequência a equivocada suposição de que se vive - já que todos “acham que” -, em uma sociedade altamente democrática onde todos estão indistintamente habilitados a emitir opinião sobre qualquer coisa, sobre qualquer tema ou acontecimento. No entanto, a mais dramática consequência dessa sociedade opinativa, fragmentada e de especialistas é o fato de ela criar falsos profetas e individualizar o poder de Estado, de sorte a transferi-lo para pessoas que - por talento ou carisma próprio - conseguem enganar a chamada “opinião pública”. Com isso, fazem crescer as lideranças políticas populistas e demagógicas ou então glorificam intelectuais oportunistas, que se somam a esses políticos profissionais e estabelecem um camuflado governo de fato. Com isso, instrumentalizam os poderes constituídos sob a falsa idéia de que são extremados defensores de conceitos como República, Democracia, Liberdade, Imprensa Livre. Mas a lista é grande e inclui ainda outros conceitos, bravamente defendidos por esses oportunistas: Ética, Direitos do Cidadão, Direitos Humanos, Devido processo legal, juiz ativo, etcétera e tal.


Conclusão. Poucos são os que percebem que essa sociedade opinativa, - espécie de democracia midiática - gera, a todo o momento, ambivalências e contradições insolúveis que são e serão sempre retoricamente enfrentadas e empurradas para a marginalidade ou para um ponto num futuro dialético ainda não inteiramente descortinado. Poucos foram os que perceberam que as causas apontadas como justificadoras de uma reforma do Judiciário e da implantação de um Conselho Nacional de Justiça em nosso Estado de Direito Democrático, não eram causas, mas efeitos de uma crise endógena do sistema. A teoria do “centralismo democrático” é evidente.
O regime federativo foi para o espaço porque conta com o beneplácito dos próprios Estados da Federação. O controle das instâncias jurisdicionais estaduais, a padronização dos julgados, a uniformização administrativa dos Tribunais de Justiça estaduais, tudo isso faz parte de um jogo ideológico de dominação e poder. Esse jogo tem como objetivo levar a solução dos conflitos judiciais para meios previsíveis, práticos e rápidos, como pode ser, por exemplo, o acordo judicial, de forma que a eficiência e rapidez na extinção dos conflitos realizem a farsa ideológica da pacificação social e se sobreponha à busca do justo.
Não há mais nada a fazer senão acompanhar o séqüito e assistir o fim do Judiciário como um poder em si mesmo, cuja finalidade, já esquecida, seria a de declarar o justo.