"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

agosto 02, 2012

Em julgamento a corrupção

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O Supremo Tribunal Federal (STF) começa hoje a julgar o maior caso de corrupção da história política brasileira.

A condenação ou não dos 38 réus definirá rumos da nossa democracia, influenciará o comportamento e o compromisso dos nossos cidadãos com a ética e a moralidade, moldará o futuro do nosso país.

O que se espera é que o mensalão seja exemplarmente punido pela nossa mais alta corte de Justiça.

O julgamento que começa nesta tarde deverá se estender até setembro. Hoje será lido o relatório do ministro Joaquim Barbosa e ouvida, ao longo de cinco horas, a acusação feita por parte do procurador-geral da República, Roberto Gurgel. "Creio que o Supremo fará justiça.

E na visão do Ministério Público, justiça é condenar todos", resumiu ele a'O Estado de S.Paulo.

Por que Gurgel tem tanta convicção?

Basta ler o que o procurador-geral escreveu em suas alegações finais sobre a ação penal n° 470: "As provas colhidas no curso da instrução, aliadas a todo o acervo que fundamentou a denúncia, comprovaram a existência de uma quadrilha (...) constituída pela associação estável e permanente dos seus integrantes, com a finalidade da prática de crimes contra o sistema financeiro, contra a administração pública, contra a fé pública e lavagem de dinheiro".

Cabia aos "dirigentes máximos" do PT - comandados por José Dirceu, então ministro-chefe da Casa Civil do presidente Luiz Inácio Lula da Silva - operar este "engenhoso esquema de desvio de recursos de órgãos públicos e de empresas estatais, e de concessões de benefícios diretos ou indiretos a particulares em troca de ajuda financeira", ainda de acordo com o documento copiosamente preparado por Gurgel.

É esta "sofisticada organização criminosa" - cuja atuação foi descrita em detalhes pelo então procurador Antonio Fernando de Souza, antecessor de Gurgel na Procuradoria-Geral da República (PGR), nas 136 páginas da denúncia apresentada ao STF em 11 de abril de 2006 - que estará no banco dos réus ao longo das próximas semanas.

Chegou a hora do acerto de contas dos mensaleiros com a sociedade.

Até o próximo dia 15 serão ouvidos, em sessões diárias com cinco horas de duração, os advogados dos 38 réus. Cada um terá uma hora para se defender das "contundentes", segundo Gurgel, provas colhidas pela PGR durante as investigações - reunidas em 50.624 páginas, distribuídas por 235 volumes e 500 apensos.

No dia seguinte, o ministro Barbosa passará a ler seu voto. O primeiro réu a ter sua sentença conhecida será Dirceu, o "chefe da quadrilha".

As investigações conduzidas ao longo destes últimos sete anos só fizeram consolidar na opinião pública a convicção de que o PT instalou, no seio do poder público, um duto para drenar dinheiro do contribuinte para bolsos privados, a fim de sustentar um projeto de perpetuação do partido no poder.

Novas evidências continuam a surgir, como a denúncia feita pelo Ministério Público Federal e aceita pela Justiça Federal em São Paulo em julho, mas só conhecida ontem, transformando Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT, em réu também por lavagem de dinheiro - no STF ele já responde por formação de quadrilha e corrupção ativa.

Os tentáculos da organização criminosa, como se vê, não têm fim.

O mais importante é perceber que o que está em julgamento é uma forma nefasta de fazer política no país, posta em prática pelo PT após assumir o poder federal, em 2003.

Trata-se de um organograma montado para corromper a relação entre os poderes, subjugar o Congresso, vilipendiar os preceitos democráticos e perenizar a presença de um único partido no comando da nação.

"O PT não inventou a corrupção, mas elevou-a a um grau de sofisticação tal que colocou em risco a democracia quando transformou o esquema criminoso em política de governo", resume Merval Pereira n'O Globo.

"Os juízes do STF não estão julgando um caso comum, mas um estratagema golpista devotado a esvaziar de conteúdo substantivo a democracia brasileira", escreve o sociólogo Demétrio Magnoli no Estadão.

Já disse um magistrado que os ministros do Supremo não devem agir como "ácaros de gabinete". É justamente o que se espera dos 11 brasileiros que, nos próximos dias e semanas, definirão como o mensalão passará para a História. De suas sentenças sairá a feição do país que pretendemos ter daqui para frente.

Todos ansiamos para que o Brasil deixe de ser tido como um paraíso para corruptos, mácula que, infelizmente, nos persegue na era petista.

Fonte: Instituto Teotônio Vilela
Em julgamento a corrupção


O julgamento da História ? "herói do povo brasileiro" não passa, aos olhos da lei, do "chefe da quadrilha"

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"O mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil", segundo a definição do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, no seu memorial conclusivo, começa a ser julgado hoje pelo STF.

A palavra "história" está um tanto desgastada.

Quase tudo, de casamentos de celebridades a jogos de futebol, é rotineiramente declarado "histórico".


O adjetivo, contudo, deve ser acoplado ao julgamento do mensalão - e num duplo sentido. A Corte Suprema está julgando os perpetradores de uma tentativa de supressão da independência do Congresso Nacional e, ao mesmo tempo, dará um veredicto sobre um tipo especial de corrupção, que almeja a legitimidade pela invocação da História (com H maiúsculo).

Silvio Pereira, o "Silvinho Land Rover", então secretário-geral do PT, tornou-se uma figura icônica do mensalão, pois, ao receber o veículo, conferiu ao episódio uma simplória inteligibilidade:
corruptos geralmente obtêm acesso a "bens de prazer" e a "bens de prestígio" em troca de sua contribuição para os esquemas criminosos. No caso, porém, o ícone mais confunde do que esclarece.


"Vivo há 28 anos na mesma casa em São Paulo, me hospedo no mesmo hotel simples há mais de 20 anos em Brasília, cidade onde trabalho de segunda a sexta", disse em sua defesa José Genoino, então presidente do PT e avalista dos supostos empréstimos multimilionários tomados pelo partido.

Genoino quer, tanto por motivos judiciais quanto políticos, separar sua imagem da de Silvinho - e não mente quando aborda o tema da honestidade pessoal. Os arquitetos principais do núcleo partidário do mensalão não operavam um esquema tradicional de corrupção, destinado a converter recursos públicos em patrimônios privados.

Eles pretendiam enraizar um sistema de poder, produzindo um consenso político de longo alcance. O episódio deveria ser descrito como um acidente necessário de percurso na trajetória de consolidação da nova elite política petista.

José Dirceu, o "chefe da quadrilha", opera atualmente como lobista de grandes interesses empresariais, não compartilha o estilo de vida monástico de Genoino, mas também não parece ter auferido vantagens pecuniárias diretas no episódio em julgamento.

O então poderoso chefe da Casa Civil comandou o esquema de aquisição em massa de parlamentares com o propósito de assegurar a navegação de Lula nas águas incertas de um Congresso sem maioria governista estável.


Dirceu conduziu a perigosa aventura em nome dos interesses gerais do lulismo - e, imbuído de um característico sentido de missão histórica, aceitou o papel de bode expiatório inscrito na narrativa oficial da inocência do próprio presidente.

Há um traço de tragédia em tudo isso:
o mensalão surgiu como "necessidade" apenas porque o neófito Lula rejeitou a receita política original formulada por Dirceu, que insistira em construir extensa base governista sustentada sobre uma aliança preferencial entre PT e PMDB.


A corrupção tradicional envenena lentamente a democracia, impregnando as instituições públicas com as marcas dos interesses privados. O caráter histórico do episódio em julgamento deriva de sua natureza distinta:
o mensalão perseguia a virtual eliminação do sistema de contrapesos da democracia, pelo completo emasculamento do Congresso.

A apropriação privada fragmentária de recursos públicos, por mais desoladora que seja, não se compara à fabricação pecuniária de uma maioria parlamentar por meio do assalto sistemático ao dinheiro do povo.

Os juízes do STF não estão julgando um caso comum, mas um estratagema golpista devotado a esvaziar de conteúdo substantivo a democracia brasileira.


No PT, "Silvinho Land Rover" será, para sempre, um "anjo caído", mas o tesoureiro Delúbio Soares foi festivamente recebido de volta, enquanto Genoino frequenta reuniões da direção e Dirceu é aclamado quase como mártir. O contraste funciona como súmula da interpretação do partido sobre o mensalão.

Ao contrário do dirigente flagrado em prática de corrupção tradicional, os demais serviam a um desígnio político maior - um fim utópico ao qual todos os meios se devem subordinar. São, portanto, "heróis do povo brasileiro", expressão regularmente usada nas ovações da militância petista a Dirceu.

O PT renunciou faz tempo à utopia socialista. Na visão do "chefe da quadrilha", predominante no seu partido, o PT é a ferramenta de uma utopia substituta: o desenvolvimento de um capitalismo nacional autônomo. Segundo tal concepção, o lulismo figuraria como retomada de um projeto deflagrado por Getúlio Vargas e interrompido por FHC.

Nas condições postas pela globalização, tal projeto dependeria da mobilização massiva de recursos estatais para o financiamento de empresas brasileiras capazes de competir nos mercados internacionais. A constituição de uma nova elite política, estruturada em torno do PT, seria componente necessário na edificação do capitalismo de Estado brasileiro.

Sobre o pano de fundo do projeto de resgate nacional, o mensalão não passaria de um expediente de percurso: o atalho circunstancial tomado pelas forças do progresso fustigadas numa encruzilhada crucial.

A democracia é um regime essencialmente antiutópico, pois seu alicerce filosófico se encontra no princípio do pluralismo político:
a ideia de que nenhum partido tem a propriedade da verdade histórica.
Na democracia as leis valem para todos - mesmo para aqueles que, imbuídos de visões, reclamam uma aliança preferencial com o futuro.

O "herói do povo brasileiro" não passa, aos olhos da lei, do "chefe da quadrilha" consagrada à anulação da independência do Congresso. Ao julgar o mensalão, o STF está decidindo, no fim das contas, sobre a pretensão de uma corrente política de subordinar a lei à História - ou seja, a um projeto ideológico.

Há de fato, algo de histórico no drama que começa hoje.

O Estado de S. Paulo