"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

novembro 28, 2014

A farra dos contratos sem licitação na Petrobras

À medida que avança a Operação Lava Jato, deflagrada pela Polícia Federal no início deste ano, os desmandos recorrentes na Petrobras se tornam cada vez mais chocantes. Um levantamento feito pelo site de VEJA com base em dados divulgados pela empresa em seu Portal de Transparência mostra que, entre 2003 e 2014, dos cerca de 890 mil contratos fechados pela estatal, 784 mil foram dispensados de licitação — o que representa 88% do total. Isso corresponde a um montante de cerca de 60 bilhões de reais gastos no período, levando-se em conta apenas os contratos fechados em moeda local. 

A Petrobras se vale do Decreto 2.745, do governo de Fernando Henrique Cardoso, para escapar do processo licitatório previsto na Lei 8.666 — à que estão sujeitas todas as compras de órgãos da administração pública. O decreto foi criado para dar agilidade à execução de obras num momento em que a estatal se abria para o capital privado. Porém, a partir de 2006, se tornou regra para quase todos os contratos.

Os montantes que envolvem a dispensa de licitação espantam. Um dos contratos, fechado com o consórcio Techint - Andrade Gutierrez, no valor de 2,4 bilhões de reais, foi dispensado de certame concorrencial porque as demais concorrentes fizeram propostas com preços “incompatíveis”. Assim, a Petrobras optou por nem mesmo fazer o leilão. Outro contrato mostra uma compra de 2,3 bilhões de reais da GE em que a empresa alega que “situações atípicas” tornaram a licitação inexigível. 

Outro contrato com a construtora Engevix, cujos executivos foram presos no âmbito da Lava Jato por suspeita de corrupção no fornecimento de serviços à estatal, foi firmado por 1,4 bilhão de reais com dispensa de licitação, sob a justificativa de se tratar de uma “urgência”. A obra consistia em fornecer material e serviços para um projeto básico.

Procurada pelo site de VEJA, a Petrobras afirmou, em nota, que as contratações seguem a legislação vigente e que, mesmo feitas com o respaldo do decreto, têm modelo similar ao licitatório. A opinião cria divergências, já que a Lei de Licitações não prevê, por exemplo, o advento da carta-convite, em que a Petrobras escolhe as empresas que podem participar da concorrência. Tampouco está na lei o artigo que permite que, depois que houve a escolha do vencedor, ambos sentem numa sala, a portas fechadas, para “renegociar” os valores e o escopo do contrato. 

O Tribunal de Contas da União (TCU) tem 19 mandados de segurança junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a revisão dos termos do decreto — e sua regulamentação. A Petrobras entrou com uma medida liminar, que foi concedida pelo STF, permitindo o uso do decreto até o julgamento de mérito. Isso ocorreu há cerca de 10 anos e o Supremo nunca mais se manifestou.

Extratos da Suíça reforçam delações

Extratos bancários das contas suíças do ex-diretor de Abastecimento da Petrobrás Paulo Roberto Costa confirmam depoimentos e delações de testemunhas e acusados de envolvimento no esquema de corrupção na estatal. Esses documentos têm potencial para abrir novas frentes de investigações no Brasil.

O que os procuradores brasileiros que foram à Suíça viram surpreendeu até mesmo quem está envolvido nas investigações há meses. Nomes de pessoas e de empresas que eles nem sequer sabiam que existiam estavam nos extratos e nas investigações dos suíços. 

Hoje, os três procuradores brasileiros que passaram a semana consultando documentos do Ministério Público da Suíça sobre o caso retornam ao Brasil munidos de novos materiais. Os documentos vão permitir que o Ministério Público brasileiro conclua as investigações e acelere o processo para abrir a fase de instrução contra os principais suspeitos, caso as denúncias sejam aceitas pela Justiça. 

No início do ano, os suíços iniciaram apuração própria e identificaram como as contas encontradas tinham relação com projetos da Petrobrás, como as refinarias de Abreu e Lima (PE) e de Pasadena (EUA). Costa pode responder a processo de lavagem de dinheiro na Suíça. No total, cinco contas em nome de Costa foram encontradas com US$ 26 milhões. Esses recursos serão repatriados ao Brasil e depositados em conta administrada pelo Ministério Público e pelo Supremo Tribunal Federal, após um acordo entre os dois países. 

Mas é o que indicam extratos e nomes de quem fez os depósitos o que mais chama a atenção dos investigadores brasileiros. O conteúdo dos extratos, quem alimentou as contas na Suíça e quem recebeu o dinheiro estão sendo mantidos em sigilo enquanto a delegação brasileira estiver em Lausanne. 

'Munição'.  
Fontes no Ministério Público da Suíça disseram ao Estado que os brasileiros retornarão ao País com "munição" para dar início à etapa final da investigação. Entre os nomes buscados estão Fernando Soares, o Fernando Baiano - apontado pela investigação como operador do PMDB -, além de empresas e intermediários.

Os documentos foram liberados pelos bancos suíços por exigência da Justiça, que tem um dossiê sobre como funciona o pagamento de propinas no Brasil. Algumas evidências apontam que as contas e o esquema financeiro operam há anos, principalmente em Genebra. 

Essa não será a única ida à Suíça dos procuradores brasileiros - Orlando Martello, Deltan Dallagnol e Eduardo Pelella. Diante do saldo positivo da viagem, os procuradores também fornecerão informações para o processo que corre na Suíça e devem retornar à Lausanne nos próximos meses.

JAMIL CHADE, CORRESPONDENTE / GENEBRA - O ESTADO DE S.PAULO

FEITA A LAMBANÇA... Depois do ajuste, quanto cresceremos?


A escolha de uma nova equipe econômica disposta a fazer um ajuste consistente dos desequilíbrios da economia brasileira, especialmente na área fiscal, levanta a questão sobre o que virá em seguida – caso a correção seja bem sucedida.

É uma indagação que tem implicações econômicas e políticas. A escolha de Joaquim Levy, de perfil claramente ortodoxo, ocorre depois de uma campanha em que a presidente Dilma Rousseff atacou com veemência seus adversários pela suposta intenção de praticar uma política provavelmente muito parecida com a que o novo ministro da Fazenda tentará implementar. No PT e entre os apoiadores da presidente de maneira geral, há resistência à esta linha de ação.

Assim, as melhores chances de que o tripé macroeconômico seja restaurado e mantido a longo prazo como funcionou na fase de 1999 a 2006 são de que a nova equipe econômica seja bastante bem sucedida, e Dilma e o PT concluam que não se deve mexer em time que está ganhando.

Para isto, entretanto, não basta inflação baixa, manutenção do grau de investimento e contas fiscais e externas mais sustentáveis. A economia terá de crescer e gerar bons empregos, depois de uma fase inicial em que provavelmente o mercado de trabalho piorará. O que importa para a manutenção do curso de política econômica do início do mandato é, evidentemente, o efeito que esta decisão terá na popularidade presidencial em meados do próximo quadriênio, quando se começar a pensar de novo em mais uma campanha eleitoral.

Uma comparação que vem à mente é com o ano de 2003, quando o então ministro da Fazenda, Antônio Palocci, promoveu um duro ajuste no início do primeiro governo petista – com Levy no Tesouro, diga-se de passagem. A aposta pagou bem na ocasião. A economia se reestabilizou, e, depois de uma nova freada corretiva para controlar a inflação, vieram os anos de crescimento acelerado que caracterizaram principalmente o segundo mandato de Lula.

Mas havia na época muitos ventos a favor. A economia vinha de anos de reformas e ajuste fiscal, o câmbio estava muito desvalorizado, o saldo em conta corrente saiu de déficit para superávit já em 2003 e havia ampla folga no mercado de trabalho. Em suma, partiu-se de uma situação sofrida mas com muito espaço para melhorar.

“Havia uma enorme gordura de prêmio de risco a ser cortada, hoje não existe esse prêmio todo em termos de reversão de expectativas”, diz Tiago Berriel, professor da PUC-Rio e economista-chefe da gestora Pacífico.

O economista vê um inevitável resfriamento da demanda num ajuste bem sucedido, levando a um desempenho da economia ruim em 2015 (a projeção da Pacífico está em torno de zero), na esteira da alta dos juros e do aperto fiscal, incluindo corte de despesa e aumento de impostos.

Apesar do déficit em conta corrente já elevado, Berriel diz que “não deve ser tão problemático aumentar o investimento com déficit externo, mas fica claro que teremos de aumentar a poupança tanto pública quanto privada – os estímulos ao consumo terão de ser moderados daqui para a frente”. Como todos os analistas ouvidos para esta coluna, ele acha que o foco da retomada pós-ajuste é o crescimento via investimento, e não via consumo.

O problema, continua Berriel, é que há uma série de obstáculos que não dependem da ação do governo (pelo menos daqui em diante) e que podem tornar a transição mais difícil e acidentada: 
a perspectiva de elevação de juros nos Estados Unidos, 
a queda do preço internacional das commodities, 
a possibilidade de racionamento se o clima não ajudar e os efeitos do escândalo da Petrobrás tanto sobre o investimento público como privado em infraestrutura e construção civil.

“O governo tem de fazer a coisa certa e dar sorte”, ele resume.

Mercado de trabalho

Um economista bastante conhecido no mercado (que preferiu falar anonimamente), sócio de uma gestora de recursos, lembra ainda de que, ao contrário de 2003, hoje há uma restrição ao crescimento vinda do mercado de trabalho aquecido (por outro lado, alguns analistas acham que uma volta do crescimento da taxa de participação poderia amenizar este problema). Já em relação à utilização da capacidade instalada, há espaço para a retomada, na sua opinião.

Ele lembra ainda que o investimento caiu muito e as empresas estão com bastante caixa, o que é positivo para uma recuperação. O fundamental, na visão desse analista (e dos outros mencionados nesta coluna), é a recuperação da confiança, que pode ser “um gatilho para o crescimento”. O economista também frisa a necessidade de que a retomada venha dos investimentos, com ênfase em medidas para melhorar o ambiente de negócios e a previsibilidade. Ele lembra, por fim, que o ajuste do câmbio para um nível mais desvalorizado pode se dar de forma ordeira, como vem ocorrendo na Austrália recentemente.

Para Samuel Pessôa, sócio e economista-chefe da gestora Reliance, a reorganização macroeconômica, e especialmente fiscal, permitiria ao Brasil crescer de 2% a 2,5%. Se a parte microeconômica for melhorada – reformas, reforço das agências reguladoras, abertura da economia, recuo do estatismo, revisão das políticas de conteúdo nacional –, o ritmo poderia ir para 3% a 3,5%.

E, se houvesse o que ele chama de “renegociação do contrato social”, o Brasil poderia crescer entre 4,5% a 5%. Ele se refere à dinâmica das políticas sociais, especialmente das transferências, que condiciona um crescimento do gasto público sempre acima do PIB – isto, por sua vez, reduz a poupança doméstica, colocando um limite a quanto se pode investir sem provocar desequilíbrios, o que tolhe a velocidade da economia.

Fernando Dantas é jornalista da Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)

Esta coluna foi publicada pela AE-News/Broadcast em 27/11/2014, quinta-feira.