"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

outubro 14, 2012

"Supondo-se malandros, demonstraram-se otários. " A CULPA NÃO É DA IMPRENSA.

Desde que o mundo é mundo, dar más notícias não é bom negócio. Não resolve nada cortar a cabeça do mensageiro, mas parece que os destinatários das más notícias têm opinião diversa, principalmente quando são poderosos e a mensagem anuncia algo que ameaça esse poder. 
E isso se estende às opiniões. 

Também desde que o mundo é mundo, os cortesãos aprendem a evitar dar palpites negativos sobre os atos dos poderosos de que dependem e é proverbial a recorrência, no folclore de muitas culturas, de histórias sobre como reis se disfarçavam e assim saíam às ruas, para tentar ouvir sem intermediários o que falavam seus súditos.

O portador de más notícias e opiniões desagradáveis, em nossos dias, é a imprensa, entendida esta como todos os meios de comunicação. Isso leva a fenômenos interessantes. Na internet é comum ler que a grande imprensa, por estar mancomunada com o governo ou com o rabo preso por interesses escusos, não denuncia isso ou aquilo e distorce os fatos para agradar o poder.

 Daí a alguns cliques de mouse, surge um artigo indignado, argumentando que a imprensa vendida e golpista é que está por trás, por exemplo, das condenações dos réus do mensalão. E protestos embravecidos choveram, logo depois das condenações da última terça-feira, culminando com o comentário de um dos advogados do réu, segundo o qual jornalista bom é jornalista morto.

O autor da frase explicou que se tratava de um pilhéria. Certamente foi, embora eu não creia que achassem muita graça nela os incontáveis jornalistas que, desde os primórdios de sua profissão, em todo o mundo, foram e são assassinados, torturados, encarcerados, banidos ou forçados ao silêncio. 

Toda ditadura, sem exceção, tem como prioridade básica o controle da imprensa, a vigilância rigorosa sobre os fatos e opiniões que podem ser conhecidos pelo público. Não há como aceitar o controle da imprensa pelo Estado e muito menos pelo governo. O resto é conversa e interesse contrariado, pois em lugar nenhum existe democracia sem liberdade de imprensa. 

É a imprensa, apesar de todos os defeitos comuns à condição humana, que serve de olho e boca da coletividade, não pode ser cerceada sem que as liberdades civis também sejam.

O espirituoso chiste do advogado, que perdeu a causa e -quem sabe se num ato falho - pode numa piada ter exposto o que lhe vai no coração, ainda compõe um panorama curioso. Os condenados e seus aliados parece que não se lembram das barbeiragens que cometeram desde que chegaram ao poder. 

Quem os meteu nessa camisa de onze varas não foi a imprensa, foram os atos deles mesmos. 

Não enxergaram que não estamos mais no país dos golpes, rumores de golpes, advertências à nação e outras práticas enterradas no passado, que as instituições vêm resistindo muito bem aos trancos por que têm passado, que houve muitas mudanças neste mundo.

Num aparente acesso de onipotência, decidiram que sórdidas práticas velhas, como a compra de apoio e de votos, nas mãos deles de alguma forma não apenas se justificavam, mas quase se legitimavam. Montaram um esquema cujos riscos não avaliaram e que talvez desmoronasse inevitavelmente, mesmo que não houvesse sido ruidosamente delatado - havia gente demais envolvida e buracos demais; o vazamento era sempre uma possibilidade. 

Não me refiro a deslizes éticos ou ações criminosas, mas a barbeiragens motivadas pelo excesso de confiança e pelo desdém pela inteligência alheia. Espertos demais, com as cabeças envoltas pelas nuvens do poder e da glória, erraram nas manobras e não por culpa da imprensa ou de ninguém, mas da própria inépcia, que redundou em ações incompetentes. O que previram, naturalmente, também se revelou errado. 

Em certo momento do desenrolar da história, pareceu até que o ex-presidente Lula achava que os ministros do Supremo por ele indicados eram ocupantes de cargos em comissão. Nomeados por ele deviam votar com ele, não foi para isso que os nomeou, onde já se viu uma aberração dessas? Por que não é possível demiti-los por quebra de confiança?

Em suma, alçados ao poder, ainda rodeados da aura ética e ideologicamente definida que publicamente os caracterizava, consagrados por uma votação expressiva e imersos numa onda de popularidade incontestável, os novos governantes e estrategistas avaliaram mal a situação, superestimaram a si mesmos e, paralelamente, subestimaram os obstáculos que enfrentariam. 

Viam-se talvez como praticantes sagazes e habilidosos de uma eficiente Realpolitik e seus planos para a obtenção da sempre lembrada governabilidade. Claro que, como disse Kennedy uma vez, a vitória tem muitos pais, mas a derrota é órfã. Ninguém entre os atingidos deve desejar ser o pai dessa grande derrota. Mas os pais são eles mesmos. 

Armaram um esquema cheio de si, acreditaram nos falsos indícios que às vezes entontecem os poderosos e quebraram a cara. Pois, afinal, as condenações são a demonstração de que o esquema armado para governar, em vez de sabido, era burro e que os novos generais engendraram e puseram em ação um plano gravemente equivocado e desastroso.

A culpa não é da imprensa, nem de ninguém, a não ser dos autores e agentes da estratégia. Supondo-se malandros, demonstraram-se otários. Isso certamente é duro de admitir e talvez nunca o seja de todo. 

Até porque vem aí, depois das sentenças, o processo em que os condenados serão considerados mártires por seus companheiros, serão objeto de apelos internacionais e, enfim, serão glorificados como heróis de sua causa, o que lá venha a ser definido como tal na ocasião. 

E a imprensa, com toda a certeza, vai ser necessária, para que isso tenha repercussão. A imprensa serve a todos, até mesmo a quem precisa muito de um culpado pelo próprio fiasco.


João Ubaldo Ribeiro
O Estado de S. Paulo


A RAIZ DO MENSALÃO

Pode até ser que o mensalão não impeça o PT de vencer a eleição para a prefeitura de São Paulo, como indicam as primeiras pesquisas, mas me parece inegável que o partido sofrerá a médio prazo os efeitos de seu desprezo pelas regras éticas na política.

O PT nasceu defendendo justamente um novo modo de fazer política e foi assim que chegou ao poder, mesmo que no período anterior à eleição de 2002 já estivesse envolvido em diversas situações nebulosas nas prefeituras que vinha governando.

Os assassinatos de Celso Daniel, prefeito de Santo André, e Toninho do PT, prefeito Campinas, são dois exemplos da gravidade dos problemas que envolviam o PT já antes de chegar ao poder central do país, com irregularidades em serviços como coleta de lixo e distribuição de propinas para financiamento de eleições. 

Quando o escândalo do mensalão eclodiu, em 2005, dois dos fundadores do PT, o cientista político César Benjamin e o economista Paulo de Tarso Venceslau, revelaram os bastidores da luta de poder dentro do partido nos anos 90 do século passado, ocasião que eles identificam como o "ovo da serpente" no qual teria sido gestado esse projeto de poder que acabou desaguando nas práticas de corrupção.

Coordenador da campanha de Lula a presidente em 1989, Benjamin garantiu que "o que está aparecendo agora é uma prática sistêmica que tem pelo menos 15 anos no âmbito do PT, da CUT e da esquerda em geral. Nesse ponto, a responsabilidade do presidente Lula e do ex-ministro José Dirceu é enorme". 

O episódio do mensalão seria o desdobramento de uma série de práticas que começaram na gestão do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) no fim dos anos 90, quando Delúbio Soares foi nomeado representante da CUT na gestão do fundo. Esse tipo de prática, segundo César Benjamin, deu "ao grupo do Lula" uma arma nova na luta interna da esquerda. 

O esquema de Marcos Valério foi apenas um upgrade na prática de desvio de verbas públicas para financiar campanhas eleitorais.

"Esse esquema pessoal do Lula começou a gerenciar quantidades crescentes de recursos, e isso foi um fator decisivo para que o grupo político do Lula pudesse obter a hegemonia dentro do PT e da CUT", disse Benjamin.

Paulo de Tarso Venceslau, companheiro de exílio do ex-ministro José Dirceu, foi expulso no começo de 1998 depois de denunciar um esquema de arrecadação de dinheiro junto a prefeituras do PT organizado pelo advogado Roberto Teixeira, compadre do presidente Lula, na casa de quem morou durante anos.

Um relatório de investigação interna do PT, assinado por Hélio Bicudo, José Eduardo Cardozo, hoje ministro da Justiça do governo Dilma, e Paul Singer, concluiu pela culpa de Teixeira, mas quem acabou expulso do partido foi Venceslau. 

Ele identifica esse episódio como o momento em que "Lula se consolida como caudilho, e o partido se ajoelha diante dele". Para ele, "um caudilho com esse poder, um partido de joelhos e um executor como o Zé Dirceu só podiam levar a isso que estamos vendo hoje", garantiu Venceslau.

Segundo ele, na entrevista daquela ocasião, "evidentemente que Lula não operava, assim como não está operando hoje, mas como ele sabia naquela época, ele sabe hoje, sempre soube".

A reação do PT ao julgamento do mensalão tem obedecido a uma oscilação que depende dos interesses políticos do partido. Da reação inicial de depressão e pedido de desculpas à afirmação de que o mensalão não passava de caixa dois eleitoral, o então presidente recuperou forças para se reeleger.

A partir daí, o mensalão passou a ser "uma farsa". Agora, que o esquema foi todo revelado à opinião pública, o PT diz que o julgamento é golpe dos setores reacionários contra um governo popular. O que importa é vencer a eleição em São Paulo, comandada por José Dirceu, como sempre comandou. 

O mensalão não terá a menor influência no eleitorado, diz o imediatista Lula, que pensa na próxima eleição sem pensar na próxima geração.

Os ensinamentos que o episódio poderia proporcionar ao partido, permitindo que recuperasse o rumo que, pelo menos em teoria, era o seu ao ser fundado, vai sendo engolido pelo pragmatismo que levou o PT aonde está hoje: 
no poder, mas em marcha batida para se transformar em mais uma legenda vulgarizada pela banalização da política.

Merval Pereira - Merval Pereira
O Globo