"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

abril 11, 2012

Hora de renegociar a dívida dos estados


Surgiu, enfim, a oportunidade de equacionar um problema que vem asfixiando estados e municípios: a repactuação das dívidas junto à União. O assunto é delicado e deveria merecer do governo federal a mesma atenção que desperta em governadores, prefeitos e parlamentares. Não parece correto misturá-lo a outros projetos igualmente relevantes da agenda legislativa.

A renegociação das dívidas subnacionais foi crucial para a sobrevivência de estados e municípios. A lei que definiu seus parâmetros data de 1997, quando a situação fiscal nas unidades da Federação era de quase insolvência e descontrole. A proposta, construída pela equipe econômica do governo Fernando Henrique, permitiu pôr, então, a casa em ordem.

Naquela época, estados e municípios financiavam-se a taxas de mercado. Vale lembrar que, em fins de 1997, a taxa de juros estava em 38% ao ano, o que resultava em juro real de cerca de 20%. A União ofereceu como opção contratos cujo indexador era o IGP-DI, calculado pela Fundação Getulio Vargas, mais juros de 6% a 9% ao ano e prazo de 30 anos para pagamento.

Para a situação vigente 15 anos atrás, as condições eram bastante favoráveis para estados - 25 deles assinaram a repactuação - e municípios - cerca de 180 aderiram às novas condições. Na prática, a União subsidiou os entes federados, que, em contrapartida, tiveram de sanear sua estrutura e ajustar suas contas, desfazendo-se de ativos - como os sorvedouros que eram, por exemplo, os bancos públicos estaduais.

Mas a situação mudou muito desde então, e o que era equilibrado tornou-se demasiado oneroso para estados e municípios. Já há alguns anos, os juros que a renegociação com a União lhes impõe superam as taxas de mercado ou as praticadas nas operações de longo prazo pelo BNDES. Tornou-se, portanto, lícito redefinir as bases dos contratos, reequilibrando-os.

A proposta que até agora obteve maior consenso foi a substituição do indexador da dívida, o IGP-DI, pelo índice oficial de inflação, o IPCA, de maneira retroativa - isto é, até a data em que foram assinados os termos. Para se ter ideia de quanto isto poderia aliviar as pesadas contas estaduais, desde dezembro de 1997, o IGP-DI variou 224,6%, ao passo que o IPCA aumentou 140,2% no mesmo período.

Além das cláusulas financeiras, os contratos das dívidas renegociadas também comprometem certo percentual das receitas líquidas dos estados - até 13% - com o pagamento do passivo e fixam uma proporção limite entre dívida e receita. Com o passar dos anos, estas condições passaram a comprometer a capacidade de investimento dos entes federados.

Estados e municípios têm sido fundamentais para a obtenção de resultados fiscais no setor público. Em muitas ocasiões, seus esforços superaram, inclusive, o do governo central, impedindo que os superávits se desmantelem. Também têm se mostrado muito mais ágeis e eficientes na execução de investimentos públicos, o que reforça a necessidade de restabelecer o oxigênio que os contratos renegociados foram aos poucos lhes retirando.

Situação de tal complexidade exige atenção detida por parte da equipe econômica petista. Mas não é isso o que se percebe. Para começar, a possível repactuação das dívidas estaduais está sendo tratada no mesmo balaio de gatos que inclui outros assuntos da chamada "agenda federativa", como a guerra dos portos e a mudança na tributação do comércio virtual.

Todos são temas caros aos interesses dos estados e deveriam merecer tratamento exclusivo, dedicado. Tal como estão encaminhados, correm risco de tornar-se mera moeda de troca. Nota-se, novamente, a velha deficiência das propostas petistas: não há uma visão orgânica por parte do governo, que transforma questões relevantes num arrazoado desconexo.

Também merece reparos a proposta, costurada desde a semana passada pelo governo, de trocar o indexador dos contratos não pelo IPCA, mas pela taxa básica de juros. A Selic é um instrumento de política monetária, e, portanto, volátil. Como tal, não deveria reger pactos de longo prazo firmados entre União, estados e municípios.

Chama atenção, ainda, o fato de que grandes corporações já obtêm da gestão do PT tratamento muito mais camarada do que o hoje dispensado a estados e municípios. Aos amigos do rei, as linhas do BNDES oferecem - com dinheiro injetado pelo Tesouro, ou seja, o meu, o seu, o nosso - juros muito inferiores aos praticados nos contratos renegociados em 1997. Por que a resistência do governo em igualar, ou pelo menos aproximar, as condições?

É positivo que, pelo menos, o governo federal tenha concordado com a necessidade de readequar os contratos. É importante, porém, debruçar-se cuidadosamente sobre o assunto e oferecer a estados e municípios uma solução perene que os alivie da situação de estar, recorrentemente, socorrendo a União - numa relação que, hoje, mais se assemelha à de agiotagem.

Fonte: Instituto Teotônio Vilela