"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

maio 31, 2012

A espada e a faca

Dicionários da língua portuguesa relacionam, como sinônimos do vocábulo corrupto, podre, estragado, deteriorado, corrompido, infeccionado, empestado, inquinado, adulterado, putrefato, errado, vicioso, viciado, devasso, desmoralizado, depravado, pervertido.

Ainda que maior número de expressões houvesse, seriam incapazes de traduzir o grau de putrefação que contamina a vida nacional, na triste confirmação da contundente frase do historiador batavo.

É lamentável, mas não há como ignorar que, não obstante certa dose de podridão seja constante nas páginas da humanidade, nunca antes (neste país) havia alcançada a plenitude a que foi levada entre nós. É como se, de tempos em tempos, a criminalidade ganhasse forças para testar a eficácia da polícia, do Ministério Público, do Poder Judiciário.

Oito séculos antes de Cristo, o profeta se lamentava: "No país inteiro não há uma só pessoa honesta... Autoridades exigem dinheiro por fora, e juízes recebem presentes para torcer a justiça" (Mq 7.2-3). À época do Brasil Colônia, em sermão dedicado a Santo Antônio, pregado em 1657, o Padre Antonio Vieira apontava a depravação dominante entre o povo.

Para ilustrar a peroração, acusava o jesuíta:
"Grande sabor é o do alheio, até para o gosto e paladar daqueles que o trazem costumado aos mais esquisitos manjares". Em seguida, narrava:
"Pôs-se uma vez à mesa el-rei D. João III e trazia grande fastio.

Entre os fidalgos que o assistiam, um muito conhecido, por discreto. Disse-lhe el-rei:
Que remédio me dais, D. Fulano, para comer, que de nenhuma coisa gosto? Coma Vossa Alteza do alheio, como eu faço, e verá como lhe sabe bem".

É do que ficamos pasmos, na época presente.
Notórios delinquentes fartam-se do alheio roubado, por ser gratuito, saboroso e se sentirem confiantes. É assustador o silêncio de pessoas convocadas para se apresentarem perante comissão parlamentar de inquérito.

Indiferentes a fatos comprovados em volumes de documentos e horas gravadas pela Polícia Federal, comportam-se de maneira audaciosa, como se nada houvesse acontecido.Crentes de que, com o passar do tempo, prevalecerá o esquecimento, livres e tranquilos aguardarão pela absolvição.

Saqueada por farsantes habituados a viver e se refestelar com o alheio, à nação pretende acreditar que haverá punição dos culpados. Está aí o famigerado caso do mensalão. Ocuparam a presidência do STF, desde a denúncia formulada pelo procurador-geral da República, os ministros Gilmar Mendes, Ellen Gracie e César Peluso.

Dentro de 6 meses aposentar-se-á, e deixará o tribunal, o presidente Ayres Brito. No mesmo período, o Supremo conheceu outras alterações. Ignora- se, todavia, decorrido tanto tempo, quando o rumoroso feito será levado à pauta, pois ainda se discute como será a sessão.

Não se trata de obrigar eminentes ministros a julgar, com a faca no pescoço, como teria sido ditocomo óbvio propósito de protelação. Diante de matéria de relevante interesse nacional, espera-se do Poder Judiciário que não seja lento nem quede em silêncio, alheio à opinião pública. A ocasião é oportuna para desmentir-se o ditado popular, segundo o qual cadeia é para pobre, preto e prostituta.

O envolvimento do sr. Carlinhos Cachoeira com senador da República e membros dos poderes Executivo e Legislativo,em volumosos negócios que cobram explicação, e do ocupante de cargo de confiança da Prefeitura de São Paulo, proprietário de cento e tantos imóveis, apontado por se locupletar com a emissão de alvarás de construção, reforçam a necessidade de enérgicas medidas do Ministério Público e de respostas do Judiciário.

Não há punhal dirigido à jugular de ninguém. O que existe é necessidade de respeito à Justiça, cuja imagem granítica, fincada à frente do STF, traz na mão esquerda a balança, como símbolo de imparcialidade, e, com a destra, empunha espada, garantidora das decisões.

Estou seguro de que contraria o projeto de vida, do ministro Ayres Britto, concluir a impoluta carreira sem antes presidir o julgamento dos réus do mensalão. De uma forma ou de outra, para o bem ou para o mal, os protagonistas entrarão para a história.

Almir Pazzianotto Pinto

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