"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

novembro 17, 2010

COMO FAZER OPOSIÇÃO?

Somos bons para mandar e, quando a ordem é dada pessoal e diretamente, a obedecer; mas não conseguimos seguir nenhuma regra.

Não somos capazes de nos guiar por normas sem cara ou corpo, mãos e chibata, dívida e promessa. Se o mandão se relaciona conosco, seguimos; se é uma lei escrita num papel ou revelada num sinal de trânsito, mandamos plantar batata.

Aprendemos, faz tempo, que seguir uma norma feita para todos, produz uma ordem anônima, impessoal e universal. Mas seguir tais leis é um sinal de inferioridade. Como discordar delas sem parecer grosseiro ou rebelde?

Os superiores fazem as leis e com elas se enroscam em exegeses profundas e eruditas, distinguindo o não do nada e ambos do zero e do vazio; já os subordinados, obedecem.
A lei não foi feita para todos do mesmo modo não governamos para todos, mas somente para os necessitados: para o "povo" pobre e faminto.


O tão teorizado e um tanto gasto papel de cidadão, não engloba o de pobre, esse personagem favorito dos políticos, porque (como os ricos) ele é o foco irredutível de toda a vida política e moral.
Em nome dos extremos, todos os extremos se justificam, pois eles são os meios que permitem chegar a um destino do qual o governo seria instrumento.


Tudo o mais é ardil

A lei vale para todos mas eu não sou todo mundo: sou especial. Filho de dona M. e do dr. P. Eleito pelo povo, sou exclusivo.
Pelos laços de família escapulo como uma aranha dessas obrigações de todos. Esses que, para mim, são populares e inferiores.


Coisas e gentes a serem elevadas e protegidas, salvas e entronizadas em alguns lugares e tempos, mas não todo o tempo.
Elas justificam um ministério da cultura, jamais a cultura de um ministério. Eis a concepção de "cultura" vigente no País...


Isso explica por que é tão fácil indiciar e acusar e tão difícil prender os facínoras que livres, ricos, risonhos, engravatados e brejeiros, nos ensinam o estar em paz com a vida. Quanto maior o bandido, mais complicado fica julgá-lo e prendê-lo porque sua fama já o situa num nível especial e diferenciado.

Não é por acaso que todo criminoso sonha virar político. Entre nós, não é o ato mas quem o pratica que condena. Se for pé rapado, "teje preso!". Se for deputado, entra o recurso e chega a veemente defesa porque

"No caso de T., não! Esse eu conheço! Esse é meu amigo! É dos nossos! A ele eu devo favores!".

Há a biografia que, na visão autoritária de um mundo graduado, as pessoas comuns não têm, porque sendo simples, honestas, indefesas, boas, pobres e humildes, numa palavra: sendo cidadãos comuns e anônimos - elas não teriam, vejam o atraso e a arrogância histórica pessoal!

Um dia, ouvi perplexo, um médico famoso dizer que jamais havia pago um centavo de Imposto de Renda.
O rompante do olhar tinha aquele brilho que ofusca os otários e os imbecis que, cidadãos, pagam e não chiam
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Um americano que partilhava conosco o jantar engasgou-se. Nos Estados Unidos, todos sabem que só há duas certezas nesta vida: a morte e os impostos, esse dinheiro sagrado que vem do povo e permite a existência do governo.

No Brasil, pelo contrário, é o governo que legitima o povo. Um papel timbrado vale mais do que o sujeito que ele representa.

Na América, os impostos são as grades da jaula de ferro que, como viram Weber e Kafka, independem da vontade humana; aqui eles são as barras de chocolate comidas pelos políticos.

Fora da situação somos mais implacáveis do que um carrasco nazista e mais sérios e duros do que guarda americano da imigração. Dentro, amaciamos e viramos cúmplices.

"Você deveria ter dito isso antes!", falamos num pedido sem desculpas. "Se eu soubesse que era o Chiquinho eu mesmo teria colocado uma cláusula especial no decreto." Ou, então: "Não custava pedir vistas ou engavetar o processo!"

Como ser oposição se um dia chegamos ao governo e, o poder é muito mais um instrumento capital para retribuir favores e não para tentar melhorar o mundo, servindo a este mundo?
Se tudo se dividia entre nós e eles, mocinhos e bandidos, revolucionários e reacionários, vira de ponta-cabeça e agora "nós" somos "eles", como fazer?


Normalmente, vamos por parte.

Os mais próximos, primeiro; depois os outros e o que sobrar, vai para a sociedade. Mas o que ocorre quando a demanda igualitária aumenta e a mídia aproxima governo e governados, revelando suas incríveis proximidades?

Mostrando como os hábitos ficam, embora a ideologia troque de lugar? Exibindo que, no fundo, todos são muito mais parecidos do que pensávamos?

A resposta, amigos, se resposta existe, é que não pode haver oposição se não há uma efetiva diferença.

Democracia tem truques, mas ela não suporta uma ética de condescendência, um espírito com dois pesos e medidas.

Roberto da Matta
O Estado de S. Paulo
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