"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

janeiro 02, 2010

TCU : VEJA PORQUÊ LULA NÃO GOSTA

Com reportagem de Leonardo Coutinho, Igor Paulin,Gabriele Jimenez,Raquel Salgado e Kalleo Coura

ACABOU NAS MÃOS DO EXÉRCITO
Leo Cladas/Ag. Titula
 
A BR-163, que liga o Pará a Mato Grosso, é uma típica estrada amazônica: vira um rio de lama no inverno e um amontoado de poeira no verão. Nos anos 90, o governo contratou um grupo de empreiteiras para asfaltá-la. A obra foi paralisada por falta de recursos e só pôde ser retomada quase dez anos depois. Mas os auditores do TCU identificaram um cipoal de problemas. Haviam sido feitas tantas emendas ao contrato original que a obra ficou quatro vezes mais cara. Alguns dos serviços, como terraplenagem, apresentavam sobrepreço de 250%. Eram tantas irregularidades que o tribunal cancelou o contrato – e a obra foi repassada ao Exército. As empreiteiras que queriam ganhar mais do que deviam (Norberto Odebrecht, Estacon, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão) reclamam na Justiça por terem perdido a parada e querem uma indenização de 82 milhões de reais. 

REDUÇÃO DE PREÇOS ATÔMICA
Manoel Marques

Em 1983, o governo decidiu construir a usina de Angra 3. A licitação das obras civis foi vencida pela empreiteira Andrade Gutierrez. O dinheiro, no entanto, nunca foi liberado, e a usina empacou. Em 2007, o projeto foi desengavetado. A Andrade Gutierrez refez seus cálculos, converteu os valores que estavam em cruzeiros e pediu 1,6 bilhão de reais pelo serviço. A Eletronuclear regateou para 1,4 bilhão de reais. A empreiteira ficou satisfeita, mas o TCU não. Ao analisar o contrato, o tribunal chegou à conclusão de que seria possível fazer a usina por um preço ainda mais baixo: 800 milhões de reais. Após muita conversa, e um rigoroso encontro de contas, fixou-se o preço final em 1,2 bilhão de reais. A empreiteira admitiu que havia itens caros demais, e o TCU concordou que, por se tratar de uma usina nuclear, alguns materiais tinham, de fato, preços mais altos que os da média do mercado. 

DRENO DE DINHEIRO PÚBLICO

Para os técnicos do TCU, a construção da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, exemplifica a fraude conhecida como "jogo de planilha". Na licitação para a terraplenagem, a Petrobras informou aos concorrentes que seria possível escavar quase todo o solo a ser aplainado – mas acrescentou que uma pequena fração do terreno precisaria ser drenada, para assentar a terra. As empreiteiras Camargo Corrêa, Odebrecht, Queiroz Galvão e Galvão Engenharia se uniram em um consórcio e ofereceram um preço baixíssimo para escavar a terra – mas estipularam um valor 319% maior que o usual para fazer a drenagem. Na média, seu preço foi o mais baixo e elas ganharam o contrato. No entanto, quando a obra começou, as empreiteiras alegaram que era impossível escavar o solo, por questões geológicas. Disseram que a única saída era drenar praticamente a área inteira. Como haviam fixado um preço exorbitante para esse serviço, o valor total da obra aumentou em 46 milhões de reais. 

ELES COBRAM OS TUBOS
Fotos Oscar Cabral

A região metropolitana do Recife vive sob um rodízio de água permanente. Para pôr fim a esse absurdo, a Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) decidiu construir a adutora de Pirapama, que aumentará em 50% o abastecimento. Mas a obra não resistiu à fiscalização do TCU. Ao analisarem o contrato, de 421 milhões de reais, os auditores encontraram sobrepreço de 69,5 milhões de reais na compra de matérias-primas. A maior parte do problema estava na aquisição dos tubos de aço-carbono, pelos quais a Compesa pagou o dobro do valor de mercado. O atual presidente da estatal, João Bosco de Almeida (que assumiu o cargo com a obra já em andamento), admitiu que o preço era mais salgado que a água do mar. "Infelizmente, não havia referências para construções desse tipo quando o contrato foi assinado", disse ele. 
 
DESPERDÍCIO SEM REMÉDIO?

Um dos maiores problemas das obras públicas no Brasil é a péssima qualidade de seus projetos executivos. Eles deveriam definir, com alto grau de exatidão, as coordenadas gerais do trabalho a ser feito. Um projeto executivo malfeito é um convite ao aumento descontrolado de gastos, pois, quando um empreiteiro encontra problemas imprevistos, exige mais dinheiro para fazer sua parte – e essa diferença é paga sem passar por licitação. Foi o que aconteceu com o Hospital da Mulher, obra da prefeitura de Fortaleza. O estudo do solo onde está sendo erguido o prédio foi uma vergonha. Quando a obra começou, descobriu-se que o terreno era mais arenoso do que se pensava, e foi preciso alterar todo o sistema de estacas para que o prédio parasse em pé. Como as fundações reforçadas não estavam no contrato, o preço do hospital ficou 7% mais alto. O TCU apontou a irregularidade, e quer rediscutir os valores que já foram aplicados. 

RUMO CORRIGIDO

A BR-101 é a principal ligação entre as cidades do litoral nordestino. Havia décadas esperava por uma duplicação que desse mais segurança aos milhares de turistas e caminhoneiros que passam por lá todos os dias. No governo Lula, a obra foi incluída no PAC e deslanchou. O projeto é excelente: prevê pista dupla em toda a extensão e longos trechos com pavimento de concreto, menos propenso ao surgimento de buracos do que o asfalto. Mas o TCU descobriu que a obra, além de provocar desvios temporários no caminho dos veículos (como se vê na foto à esquerda), estava sendo usada como caminho para o desvio de dinheiro público. O preço que as empreiteiras haviam fixado para fazer o serviço estava claramente sobrevalorizado. Depois que os auditores do tribunal descobriram a farra, as empresas tiveram de abrir mão de 16% de tudo o que esperavam receber. Com isso, o Erário deixou de ser sangrado em 236 milhões de reais. 

UMA CORTE MILIONÁRIA

"Antieconômica", "recheada de graves falhas" e "superdimensionada". É assim que o TCU descreve em seus relatórios a construção da nova sede do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília. Os auditores do tribunal analisaram os contratos firmados entre a corte brasiliense e as empreiteiras e, data venia, descobriram um sobrepreço de 35 milhões de reais. Entre os valores contestados, há um pagamento de 8,6 milhões de reais que seria feito ao escritório do arquiteto Oscar Niemeyer. A nova corte foi projetada para ocupar 170 000 metros quadrados, distribuídos por quatro prédios. Apesar das dimensões nababescas da obra, a qualidade de seu projeto é miserável. Além do sobrepreço, há falhas ensurdecedoras de tão gritantes. Por exemplo: nenhum engenheiro previu a construção de estacas, fundamentais para sustentar as estruturas. O escândalo é tamanho que a obra foi paralisada e o Conselho Nacional de Justiça determinou a revisão de todo o projeto. 

UMA OBRA "DIFERENTE"

Na divisa entre os estados de Alagoas e Bahia, está sendo escavado o Canal Adutor do Sertão, que vai desviar as águas da Bacia do São Francisco para o interior alagoano. Licitado em 1992, o canal só começou a ser construído dez anos depois. Agora, foi posto em xeque pelo TCU. Os fiscais esmiuçaram o destino de 245 milhões de reais empregados na obra e apontaram que, desse montante, 37 milhões de reais haviam sido gastos sem nenhuma justificativa. A construtora Queiroz Galvão foi obrigada a contratar um seguro para garantir que devolverá essa soma aos cofres públicos caso seja condenada em definitivo. O secretário de Infraestrutura de Alagoas, Marco Fireman, tenta apagar o incêndio. Segundo ele, o problema é que o TCU exige preços baixos demais, fora da realidade. "Nosso serviço não se encaixa nesses balizadores, porque a obra é cheia de especificidades. O que fazemos aqui é diferente", diz. 

ENCOLHE E ESTICA

O metrô de Salvador foi projetado para ter 12 quilômetros de extensão. O projeto encolheu pela metade, mas o preço quase dobrou. É isso mesmo: o metrô terá apenas 6 quilômetros, mas custará 76% mais que o previsto. A prefeitura acha isso normal, mas o TCU descobriu que, do valor total que já foi pago, 100 milhões foram superfaturados. Diante disso, o tribunal pediu que os custos de todos os itens do contrato fossem recalculados. A prefeitura explicou que era impossível, pois não fazia ideia nem dos preços nem da quantidade de materiais utilizados. Como se não bastasse, o consórcio que toca o projeto, formado por Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e Siemens, ainda tentou conseguir um dinheiro extra – mais 88 milhões de reais – para acabar o serviço. Se não fosse pelo TCU, o dinheiro já teria saído. 

O AEROPORTO QUE NÃO DECOLA 

Em uma ação exemplar, o TCU cancelou o contrato firmado entre a Infraero e o consórcio formado pelas empreiteiras Camargo Corrêa, Mendes Júnior e Estacon para a reestruturação do Aeroporto de Vitória. A medida drástica foi tomada depois que uma auditoria descobriu que havia 44 milhões de reais de superfaturamento no projeto, ou 12% do valor total. Para estancarem a sangria, os ministros do tribunal tiveram de enfrentar não só as empreiteiras, como também a Infraero, que se opôs à redução das despesas. O TCU venceu a queda de braço e a obra foi cancelada. Agora, uma nova licitação terá de ser feita, mas, como a Infraero e as empreiteiras não se entendem sobre os valores que já foram pagos (e que eventualmente terão de ser ressarcidos), o processo ainda nem começou. 

MAR DE LAMA

Em 1998, mineiros e capixabas se animaram com o início da construção da BR-342, que ligaria o norte do Espírito Santo a Minas Gerais. Para pavimentar os 106 quilômetros da rodovia, foram celebrados três contratos com duas empreiteiras. Nos três o TCU encontrou sobrepreço – sempre na casa de 50% do valor global. Além disso, parte dos serviços que as empreiteiras alegam ter executado não foi fiscalizada pelo governo. Por fim, o valor dos contratos aumentou sem nenhuma justificativa técnica. Uma estranheza atrás da outra. Como a obra se tornou um sorvedouro de dinheiro público, o TCU pediu sua paralisação. Hoje, há apenas 33 quilômetros asfaltados. Outros 27 quilômetros são transitáveis, mas ainda não receberam uma gota de asfalto. Nos 46 quilômetros restantes, a obra nem sequer foi iniciada.