"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

dezembro 03, 2012

LEGAL MAS IMORAL ! Dinheiro para quem já tem

O Itaú Cultural, instituto priva­do ligado ao Itaú Unibanco, recebeu permis­são do Ministério da Cultura para captar R$ 29.898.227,71 por meio da Lei Rouanet, que concede incentivos fiscais para empresas que investem em cultura. O valor é um dos maiores da lista de 2012 e chama a atenção pelo fato de envolver o banco mais lucrativo do Brasil. 

Ou seja: 
uma entidade cultural ligada a um grupo privado com formidável poder financeiro conseguiu ge­neroso aval para obter o dinheiro necessário para seus projetos em 2013, oferecendo a parceiros igualmente poderosos - alguns deles integrantes do próprio Itaú - o direito de abater do Imposto de Renda parte de seu investimento. 

Não se trata de condenar o Itaú Cultural nem seus eventuais sócios, porque eles estão agindo estritamente dentro da lei. O pro­blema é, justamente, a lei, cujas óbvias distorções deman­dam urgente reforma. Prometi­da reiteradas vezes pelo governo nos últimos anos, essa reformulação ainda repousa nos es­caninhos do Congresso.

Ainda que tenha falhas, a Lei Rouanet, de 1991, trouxe benefícios evidentes e tornou-se o principal meio de incentivo cultural no Brasil, graças à quase inexistência de mecenato e à esqualidez orçamentária do Mi­nistério da Cultura. 

Para medir esse sucesso, basta observar os números: 
em 2003, foram movimentados R$ 430 milhões; no ano passado, os recursos atingiram R$ 1,3 bilhão. 

Mas voltando às falhas, para come­çar, mais de 70% dos produto­res culturais que se candida­tam ao benefício são deixados de fora do bolo - muitos por evidente limitação artística, mas outros porque são incapa­zes de competir, em condição de igualdade, com organiza­ções culturais fortes e conheci­das do mercado.

Assim, o sistema criado pela Lei Rouanet favorece quem te­ria condições de obter recur­sos de outra maneira. Um caso notável ocorreu em 2006, quando a trupe canadense Cirque du Soleil fez uma tempora­da no Brasil parcialmente fi­nanciada com recursos públi­cos oriundos de renúncia fiscal - a promotora do espetáculo, a mexicana Companhia Interámericana de Entretenimento, foi autorizada pelo Ministério da Cultura a captar R$ 9,4 mi­lhões. 

É difícil aceitar como ra­zoável que um grupo artístico mundialmente famoso, que co­bra até R$ 370 por ingresso, te­nha necessidade de se finan­ciar com o dinheiro do contri­buinte brasileiro. Exemplos co­mo esse se multiplicam.

Outra distorção importante da Lei Rouanet é que as empre­sas que aceitam investir nesses projetos culturais, muitas ve­zes financiando fundações pri­vadas, não só abatem integral­mente o valor do Imposto de Renda, como também podem associar sua marca ao evento, sem que o uso de recursos pú­blicos fique suficientemente claro para a platéia. 

Trata-se de marketing gratuito, geral­mente com grande visibilida­de, uma vez que boa parte dos projetos aprovados é protago­nizada por artistas renomados e por grandes produções.

Uma proposta de reforma da lei, que tramita na Câmara, pre­vê justamente que projetos considerados ""viáveis" do pon­to de vista comercial, isto é, que possam obter recursos e atrair público sem a necessida­de de incentivos fiscais, sejam excluídos do mecanismo de fo­mento cultural. 

A decisão so­bre essa viabilidade seria toma­da pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, entidade do Ministério da Cultura res­ponsável atualmente por apro­var os projetos encaminhados.

É um começo, pois o cerne do problema é a dependência que a Lei Rouanet parece ter criado no universo cultural brasileiro, isto é, só existe investimento em arte se as empresas tiverem abatimento fiscal de 100% e, de preferência, se houver garantia de sucesso de bilheteria. 

Espe­cialistas preveem que, caso o be­nefício seja reduzido para 30% ou 50%, como prevê o texto da reforma, haverá queda drástica dos recursos investidos, de­monstrando que o interesse cul­tural é, em muitos casos, limita­do à perspectiva do ganho finan­ceiro. 

Logo, os mecanismos de incentivo à cultura, embora vi­gentes há duas décadas, ainda não construíram laços efetivos e duradouros entre a produção artística e os "mecenas".

O Estado de S. Paulo 

Nenhum comentário: