"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

agosto 27, 2012

A piada, os marcianos e as instituições

Certamente Delúbio Soares passará para a história republicana como um cínico e um frasista, pois algumas de suas tiradas foram de grande repercussão. Assim, ao falar do mensalão, inventou a expressão "recursos não contabilizados", não sem expor um sorriso irônico em suas declarações.

Nunca teve o menor pudor em utilizar a linguagem para encobrir todos os seus malfeitos, contando, no futuro, com a impunidade. Entre os seus, foi inclusive agraciado com o retorno ao partido, braço mãe que o acolheu depois de uma encenação de expulsão, apenas retórica, com vistas a apaziguar a opinião pública, aterrada, por assim dizer, com o abandono petista da ética na política.

Entre outras considerações suas, houve uma que encontrou um eco bastante grande à época, a de que o "mensalão", em alguns anos, se tornaria uma "piada" de salão. Alguns anos já se passaram e o Supremo se defronta agora com os fatos geradores da "piada" e suas consequências.

Seguro de suas posições e apoios, o ex-tesoureiro do PT pretendeu se colocar na posição de um "profeta" anunciando o futuro.

Evidentemente, o personagem não tem a estatura dos "profetas bíblicos", mas cada sociedade tem os anunciadores do futuro que merece. Contudo, será que a sua profecia se realizará?

A "piada", aliás, estava alicerçada na concepção que foi depois difundida por várias lideranças petistas de que o "mensalão" não existiu, como se a nossa Suprema Corte estivesse, agora, às voltas com o julgamento de algo inexistente. Como se poderia julgar algo inexistente?

Seria tal pergunta risível se ela não estivesse alicerçada em toda uma campanha de formação da opinião pública visando a tornar um fato de desvio de recursos públicos e aparelhamento partidário do Estado, em particular de uma instituição sua como o Banco do Brasil, em um não fato.

Ou seja, o irreal seria o fundamento de uma certa concepção partidária, baseada no enfraquecimento sistemático das instituições republicanas e da moralidade pública.
Os advogados de defesa, salvo exceções, adotaram a atitude de marcianos, chegando a um planeta desconhecido. Não sabiam de nada do que tinha ocorrido e desconheciam os fatos.

As suas respectivas defesas apresentaram um conjunto de anjos que não tinha a menor ideia de nada, como se o julgamento do Supremo fosse somente o resultado de um grande equívoco que esses doutos, regiamente pagos, teriam a missão de esclarecer.

Abraçaram para si a concepção da piada, refinada, se é que se posse utilizar esse termo, na formulação de que o mensalão não existiu.

Os réus estariam ali por uma mera casualidade, fruto provavelmente de uma conjunção astral desfavorável, nada que o tempo e "bons" argumentos não poderiam resolver. Aliás, "bons" argumentos seriam precisamente aqueles que demonstrariam a inexistência de crimes, capazes de convencerem os ministros do Supremo de que o mensalão foi uma invenção midiática ou uma tentativa de "golpe de Estado".

Ou a maior parte dos advogados vive em Marte, ou compartilha do cinismo de Delúbio e seguidores. A piada e a afirmação da inexistência do mensalão pertencem ao planeta deles, esperamos que não ao nosso.

A denúncia do procurador-geral da República, seguida e enriquecida pelo relator Joaquim Barbosa e, também, pelo ministro revisor Lewandowski, permite recolocar a "piada" e as declarações de mera existência de um "caixa dois" em seus devidos lugares.
Tudo indica, nesses primeiros dias de julgamento, que a "profecia" delubiana não irá se realizar, mostrando um Tribunal à altura da defesa das instituições, pois, enfim, é disso mesmo que se trata. Com efeito, as instituições não podem se tornar uma piada, sob o risco de os risos serem anunciadores de um futuro sombrio.

O relatório do ministro Joaquim Barbosa, extremamente sério, bem argumentado e rico em informações foi, em linguagem não jurídica, a exposição do mapa do crime, como se falava antigamente em mapa do tesouro, escondido por piratas que assaltavam e agiam à revelia da lei.

Seguiu a trilha desses "piratas modernos", que diferem dos antigos por se apresentarem bem vestidos e usarem, alguns, óculos, em vez dos tapa-olhos de outrora.


Esses tinham charme, enquanto os atuais são meramente banais.
A vantagem dos antigos, por assim dizer, consistia em mostrar o que eram, que não tinham nada a ocultar, à diferença dos "modernos", que pretendem passar por homens de sociedade, aceitos por suas práticas "criminosas", aliás, "inexistentes".

Os fatos apresentados e demonstrados expõem todo o caminho de desvio de recursos públicos, com dezenas de milhares de faturas falsas, com responsáveis públicos desviando em proveito próprio e de suas agremiações partidárias fundos que são, em última instância, dos contribuintes.

Já aparece com nitidez nessa fase primeira do julgamento o aparelhamento partidário do Estado no governo Lula, como se as instituições fossem meros instrumentos carentes de uma validade e legitimidade próprias.

O risco de tal conduta consiste em considerar as instituições como meros meios a serviço de finalidades partidárias, que se erigem como primeiras. O trabalho da Polícia Federal, do Ministério Público e dos ministros do Supremo que até agora se manifestaram permite ver em funcionamento instituições que existem independentemente de governos e partidos.

A trilha do tesouro roubado está sendo desvendada, com a condenação dos primeiros envolvidos.
O mapa foi apresentado.
Resta, agora, seguir as pegadas dos que cometeram os atos criminosos.

Nessa altura do julgamento, não será mais possível voltar para a negação dos fatos, para a inexistência do crime. O problema a ser ainda julgado reside no pé das pegadas, nos agentes que trilharam o caminho do crime.

Ou seja, cabe, agora, determinar as responsabilidades individuais que, elas também, devem ser provadas, sob risco de atentarmos, por outro lado, aos direitos individuais.
O mapa já foi apresentado, faltam ainda os responsáveis.

Denis Lerrer Rosenfield O Globo

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