Entre as cidades atingidas em 2011 pela tragédia das chuvas na região serrana do Rio de Janeiro, Nova Friburgo foi a que mais sofreu.
Das 918 vidas ceifadas.
426 feneceram na cidade. Os desabrigados ali somaram 12000, ou 7% da população.
O hospital chegou a ficar submerso e 27 escolas foram invadidas pela lama. Exatamente um ano depois da tragédia 7000 pessoas continuam sem casa, três escolas deixaram de existir e nenhuma das quarenta, pontes levadas pela enxurrada foi reconstruída - cenário parecido com o das vizinhas Teresópolis e Petrópolis.
Os escândalos que se seguiram à tragédia culminaram, em novembro, com a cassação do prefeito de Teresópolis, Jorge Mário, e o afastamento por decisão judicial do prefeito de Friburgo, Dermeval Barboza. Em dezembro, uma CPI concluiu um relatório de 3000 páginas sobre os desvios e um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) determinou a devolução de 4,3 milhões dos 12 milhões de reais enviados à cidade pelo governo federal.
Na semana passada, VEJA teve acesso aos dois documentos. Encontrou um enredo de desmandos que, esmiuçado, bem poderia servir para ajudar a, evitar a ação dos abutres que lucram com a desgraça alheia - e, certamente, estão prontos para faturar com o espólio das chuvas deste ano.
A CPI da Tragédia rastreou o destino dos 24 milhões em dinheiro federal, estadual e doações enviados a Friburgo. Foram fechados 45 contratos. Todos irregulares.
Como não havia necessidade de licitação, dado o caráter emergencial das despesas, os abutres não se preocuparam nem em disfarçar. Lançaram mão de falsificações roscas de notas fiscais e planilhas de serviço, simularam pesquisas de preço com firmas-fantasma e compraram uma quantidade abissal de material hospitalar.
A farra maior ocorreu na limpeza e retirada dos escombros.
Dos 8,3 milhões de reais destinados a esses serviços, metade foi paga sem comprovação. Uma única empresa, a Vital Engenharia, recebeu 4,3 milhões de reais para tirar o entulho de sete bairros, mas limpou somente dois. Apenas dois fiscais vigiavam a aplicação do dinheiro.
Segundo o Ministério Público Federal, eles integraram o esquema.
Assinaram planilhas em branco, atestaram ter visitado obras que nem sequer haviam começado e ignoraram o fato de duas empresas terem sido pagas para limpar a mesma rua.
Nem a tentativa de fazer com que as crianças retomassem a rotina escapou da sanha dos inescrupulosos.
A empresa contratada para levar 1700 alunos para as escolas municipais durante quarenta dias não conseguiu comprovar que eles foram de fato transportados. Descobriu-se que pelo menos quatro vans fizeram trajetos já cobertos pelo transporte público.
E mais:
de acordo com as notas fiscais, cada van teria percorrido, em média, 140 quilômetros - o suficiente para levar a todos de Friburgo ao Rio de Janeiro diariamente. Os contratos para a saúde não causam espanto menor.
Foram comprados 2 milhões de pares de luvas cirúrgicas e 532 000 seringas. Será possível atender cada friburguense pelo menos dez vezes e ainda aplicar três injeções.
O pagamento foi embargado judicialmente. mas metade do material foi entregue. "Até hoje há seringas se estragando nos depósitos da cidade", diz o relator da CPI, Pierre Moraes (PDT).
Não é só no Brasil que grandes tragédias são vistas por pilantras como oportunidade de lucro. Nos Estados Unidos, constatou-se que houve desvio de pelo menos 1 bilhão dos 40 bilhões gastos após a devastação provocada pelo furacão Katrina.
Pagaram-se de ingressos para shows a custas de divórcios e até entradas em clubes de striptease com o dinheiro das vítimas.
Lá, centenas foram processados e muitos acabaram presos - algo que até agora não se viu por aqui. Mas, se serve de consolo, pelo menos o governo federal adotou alguma medida para tentar evitar mais lambança.
As prefeituras atingidas pelas chuvas deste ano receberão uma espécie de cartão de débito para usar os recursos federais. Assim, o governo espera poder acompanhar os gastos pela internet, via Portal da Transparência - e coibir no ato as irregularidades.
Em Friburgo, o cartão poderia ter ajudado a prevenir o desvio de 4,3 milhões de reais que a CGU está cobrando.
Mas não teria evitado a farra com o dinheiro das doações e do governo estadual.
Diz o procurador da República Marcelo Medina, que instaurou nove inquéritos contra a prefeitura de Friburgo:
"O ideal é que todos os gastos, e não só uma parte, sejam acompanhados on-line".
Enquanto não for assim, os abutres continuarão a bicar o dinheiro das vítimas.
Leslie Leitão/Veja
Nenhum comentário:
Postar um comentário