É conhecida a história do auditor que encontrou uma girafa pastando nos jardins do Palácio do Itamaraty. De imediato, solicitou explicações ao Ministério das Relações Exteriores, mas quando lhe mostraram que o animal havia sido adquirido em uma licitação, pelo menor preço, o assunto foi encerrado.
A piada ilustra a preocupação dos órgãos de controle com a legalidade — o que é essencial — e o desprezo da análise quanto à necessidade e à prioridade do gasto público.
Na realidade, existem diversas girafas nos gastos públicos. A bicharada começa a aparecer quando o Orçamento Geral da União (OGU) é aprovado no Congresso Nacional, contendo valor expressivo não detalhado para estados e municípios.
Como os ministérios são — há muitos governos — loteados entre os partidos políticos, alguns ministros de plantão costumam utilizar esses recursos das chamadas “transferências voluntárias”, de forma discricionária, possivelmente atendendo interesses partidários e até pessoais.
No Ministério da Integração Nacional, por exemplo, auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) constatou que, em 2008 e 2009, os municípios baianos ficaram com 65% dos R$ 175,3 milhões desembolsados pelo programa de prevenção e preparação para emergências e desastres.
Segundo o tribunal, houve uma “forte tendência de concentração de recursos nos municípios do estado da Bahia”, terra natal do ex-ministro e candidato derrotado em 2010 ao governo local, Geddel Vieira Lima.
O ministério justificou a preferência alegando que a Bahia apresentou maior demanda, o que nos leva a concluir que projetos de prevenção de desastres são como o acarajé e o vatapá, que os baianos fazem como ninguém.
No Ministério da Justiça, não foi muito diferente.
Em 2009, as prefeituras do Rio Grande do Sul receberam metade dos R$ 11,9 milhões do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) transferidos aos municípios — a chamada modalidade 40, no linguajar burocrático.
As cidades de Canoas, Cachoeirinha, Sapucaia do Sul e Novo Hamburgo conquistaram, juntas, R$ 5,9 milhões.
Vale recordar que no ano passado, o ministério era comandado pelo gaúcho Tarso Genro, recém-eleito governador.
Já nas transferências para os estados — modalidade 30 para os técnicos — o Rio Grande do Sul só perdeu para o Rio de Janeiro.
No Ministério do Esporte, outra enorme curiosidade. Em 2009, nos valores repassados aos municípios, a cidade mais favorecida (com R$ 10 milhões) foi a de Campinas, em São Paulo.
O secretário de Esportes e Lazer da cidade paulista, à época, era Gustavo Petta, cunhado do ministro do Esporte. Os recursos injetados no município não foram suficientes para eleger o ex-secretário ao cargo de deputado federal pelo PCdoB, casualmente o mesmo partido do ministro Orlando Silva.
A distribuição de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) envolve, também, significativo número de pessoas coincidentemente ligadas a um mesmo partido político.
Na ação de “orientação profissional e intermediação de mão-de-obra”, a Secretaria de Trabalho, Emprego e Promoção Social do Paraná liderou os valores enviados pelo Ministério do Trabalho e Emprego aos estados.
A ONG favorita nesta mesma ação foi a Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos, presidida por um vereador de Curitiba, integrado à campanha do candidato do PDT, Osmar Dias, ao governo estadual.
Por acaso, à frente do Ministério do Trabalho, ao qual estão vinculados os recursos do FAT, está Carlos Lupi, expresidente do PDT.
Os repasses ao Paraná são curiosos visto que o índice de desemprego no estado, no ano anterior, foi um dos menores entre todas as unidades da federação.
Para dizer o óbvio, as verbas de prevenção deveriam ser canalizadas para as áreas de risco, as de segurança pública para as cidades e estados onde a violência é maior, as do esporte para os locais onde não existam equipamentos públicos e onde a integração social seja mais necessária.
No entanto, o discernimento passa ao largo.
A bem da verdade, essa prática acontece há muitos anos, há vários governos, com a tolerância do Congresso Nacional, do Ministério Público e dos órgãos de controle, preocupados, apenas, com a legalidade.
No início de um novo governo e de uma nova legislatura, espera-se que sejam discutidos critérios técnicos para as transferências voluntárias, de forma a eliminar a politização dos recursos públicos.
Do contrário, a girafa — desde que legal — continuará a pastar na Esplanada dos Ministérios.
Gil Castello Branco/O Globo
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