Blindagem é uma  palavra nova no vocabulário político do Brasil. Blindar significa  revestir com estruturas metálicas para proteger um corpo. 
Ou evitar que o  eventual vazamento de seu conteúdo contamine o ambiente. 
Nenhuma  palavra surge na política dissociada do seu momento histórico.
O  verbo blindar ganhou força num período de crescimento econômico,  distribuição de renda e licenciosidade dos detentores do poder. A  blindagem mais comum ocorre quando surgem evidências contra ministros e o  governo e sua base aliada decidem, de certa forma, interromper o  questionamento. 
Como em outras vezes, o governo nos orienta, claramente,  a não acreditar nas evidências que estão na mesa, e sim nele e em sua  versão oficial. Ao realizar esse movimento, o governo nos joga no  terreno da religião e da magia.
Em A Cidade de Deus, de Santo  Agostinho, não era a visão física que nos descortinava a realidade, só  alcançável pelos olhos da fé. Richard Sennet, em A Consciência do Olho,  lembra que os únicos espaços de imunidade no cotidiano medieval eram os  terrenos da igreja. 
Não eram delimitados, como nos palácios, por muros  de pedras ou pontes levadiças, e sim pela magia divina. Para esses  espaços de imunidade corriam os pobres, os doentes e os desamparados,  que, geograficamente, se colocavam dentro do círculo mágico traçado pela  bondade divina. 
A blindagem moderna no Brasil não é um espaço de  refúgio dos mais fracos ante da perseguição da urbs. É de uso pessoal,  como um abadá metálico, e se destina a proteger alguém no núcleo do  poder.
De um ponto de vista religioso, o verbo blindar aproxima-se  mais dos versos de Jorge Benjor, no sentido de fechar o corpo: 
Para que  meus inimigos tenham mãos, não me peguem, não me toquem/ Para que meus  inimigos tenham olhos e não me vejam/ E nem mesmo um pensamento eles  possam ter para me fazerem mal. 
Na canção Jorge da Capadócia, "vestido  com as roupas e as armas de Jorge", o combate é muito mais seguro: 
Facas, lanças se quebrem, sem o meu corpo tocar/ Cordas corrente se  arrebentem sem o meu corpo amarrar. Tudo se passa num universo mágico,  onde feitiço, mandingas são combatidos com o fechamento do corpo. 
É um  campo pré-moderno, anterior ao predomínio da ciência e da razão.
Muitos  podem dizer que a modernidade também é uma forma de magia que se  considera, indevidamente, superior às outras. Mas se há discussão na  antropologia, na políticas as dúvidas são menores. 
Fechar o corpo é  pré-moderno no contexto do ritual democrático. Em termos políticos, o  verbo blindar é uma invenção infantil que só prospera enterrando as  possibilidades de um debate racional. 
É como se a base aliada fosse um  grupo de meninos acossado pelas críticas e decidisse, subitamente,  gritar: 
Shazam! A partir daí, envolvidos no aço, os protegidos seguem  seu rumo, fora do alcance humano. 
Ainda em termos democráticos, o  processo de blindagem determinado por um grupo majoritário é o mesmo que  encontramos nas partidas infantis em que o dono da bola, vendo seu time  ameaçado, acaba com o jogo e a leva para casa.
Sexta economia do  mundo, no início do século 21 o Brasil ainda não se desprendeu do  realismo mágico celebrizado por romancistas latino-americanos. Ministros  blindados entram e saem do Palácio do Planalto. 
Seus movimentos são  reduzidos por causa do peso. Não podem estar juntos em certos lugares  porque o assoalho se rompe. Blindando aos poucos seus aliados, Dilma  Rousseff poderia exibir uma ala de ministros blindados na parada de 7 de  Setembro. 
Depois de passarem os Urutus, veríamos os ministros  blindados, cada qual com sua estrutura e com um tipo de aço, forjado na  amizade pessoal, na força do clã ou mesmo na conveniência das alianças  regionais.
Ao recusar as evidências, Dilma pede apenas que  acreditemos nela, que vejamos com os olhos da fé o luminoso caminho que o  Brasil vai trilhar, rumo ao que chama de um país de classe média. 
 Neste  começo de ano já se soube que o programa de segurança, chamado  Pronasci, fracassou e precisa cortar metade dos investimentos, que  seriam de R$ 2 bilhões. 
Da mesma forma, dados de 2011 indicam que não  houve avanços no campo do saneamento básico, mas um pequeno retrocesso:
  continuamos com 45% das casas sem essa estrutura elementar. 
Dilma  apresentou-se na eleição como a mãe do PAC. Diante dessa nova situação, o  melhor é ser apenas Mãe Dilma, dessas que tiram mau-olhado e trazem de  volta em 48 horas a pessoa amada. 
Ao optar pela blindagem, o governo não  só fechou o corpo de seus ministros, mas recuou o processo democrático  para o universo da magia.
O que podem as pessoas, na chuva, a casa  caindo, diante de ministros blindados, que passam em carros blindados?  Toneladas de aço e de símbolos tecidos com as linhas de um poder  metálico os separam do comum dos mortais. E nós, que pensávamos que a  política nos reaproximaria, que era uma de suas qualidades... 
Já não se  trocam tiros, é verdade. Mas a espessa blindagem das forças majoritárias  que querem que os adversários tenham olhos, mas não vejam, tenham mãos e  não lhes toquem, essa armadura revela que a democracia no Brasil ainda é  uma relação vivida com um preservativo de aço.
O verbo blindar  sentou praça na política. É um dado novo na trajetória da  redemocratização. Representa a quebra da promessa de transparência,  entendida não só como revelação das ações, mas também reconhecimento da  responsabilidade. 
Com o verbo blindar rompeu-se o vínculo implícito na  promessa. Legalmente, tudo pode ser revelado. 
No entanto, nada pode ser  feito. A possibilidade de esse mecanismo ser rompido: casos com provas  arrasadoras, o que os americanos chamam de revólver fumegante e os  latinos, batom na cueca. As exceções são uma válvula de escape.
No  passado, o corpo fechado dos governantes, como Papa Doc, no Haiti, era  atribuído à proteção dos orixás. 
Que deuses protegem os blindados  brasileiros? 
Os deuses do aumento salarial, das compras em Miami? 
O  processo brasileiro rebaixa, ao mesmo tempo, a democracia e a religião.
Fernando Gabeira  


 
 
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