"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

setembro 30, 2011

O DOCE E O FEL E O QUE O BC NÃO CONTA .


Certo nos cenários do BC é a redução da Selic e do PIB (3,5% este ano). A da inflação é aposta.

O relatório trimestral do Banco Central sobre a inflação projeta uma conjuntura tensa para a economia na maior parte do mandato da presidente Dilma Rousseff, com óbvias implicações políticas.

Questão-chave no documento é o que indica o BC para a trajetória da inflação:
ela só deverá voltar à meta de 4,5% de variação anual em meados de 2013, estando acima de 7% em doze meses até agosto.

E isso não por causa da crise externa, vista pelo BC como um fator a contribuir para a melhora do balanço de riscos para a inflação.

A crise externa, implicando um quadro econômico de quase recessão na Europa e EUA, desinflacionará os preços das commodities, o que, associado ao patamar elevado da taxa de juros básica — apesar de o BC ter começado a reduzi-la — e à promessa do governo de controlar os gastos públicos federais no orçamento de 2012, deverá esvaziar as pressões inflacionárias. Essa é a visão do BC em seu relatório.

Com 138 páginas, o documento é indigesto, mas o excesso permite a inclusão de diversos cenários, tornando difícil que um deles, pelo menos, não aconteça. Importa, assim, detectar o que influencia as percepções da diretoria do BC sob o comando de Alexandre Tombini.

O traço condutor do relatório é guiado por duas preocupações: uma mais séria, referente ao ritmo da economia interna, isto é, do PIB (Produto Interno Bruto), e outra não propriamente com risco menor, a crise externa, mas sem "eventos extremos", como qualificou o BC no relatório trimestral de inflação — ou RTI, segundo o jargão.

O mundo deverá ficar pior em 2012, com as ansiedades dos mercados voltando a serenar só muito adiante, mas os cenários do BC supõem que os governantes não deixarão que ocorra um colapso equivalente à quebra do Lehman Brothers em setembro de 2008. Desta vez, algo assim seria fatal para o fragilizado sistema financeiro mundial.

Se o BC avalia como baixo o risco de outro choque de preços vindo de fora, como foi o dos alimentos em 2010, o que pede atenção está aqui mesmo no Brasil. Mas antes, segundo a linha mais tolerante do governo Dilma com a inflação, a sugestão implícita à análise do BC é que se olhe para a dinâmica do PIB — motivo real da reversão do ciclo de alta da taxa Selic, que saiu de 10,75%, em dezembro, para 12,50%, recuando a 12% no fim de agosto.
Aguardam-se mais cortes.

Decisão é de governo

Não se justifica a contração monetária, se o crescimento do PIB, projetado no RTI anterior em 4% este ano, foi revisado para 3,5%, menos da metade do aumento de 7,5% em 2010. Por mais que desagrade o mercado financeiro, desinchar a Selic foi decisão de governo. Se esta tendência vai chocar-se com a da inflação é algo a se ver.

O que está visto é a desaceleração forte da economia, embora com nuanças: é maior da produção industrial que da demanda, bafejada pelos bons eflúvios do mercado de trabalho — que exibe, como o RTI diz, sinal de moderação da geração de vagas, mas longe de apontar desemprego —, e do crédito ao consumo, que voltou a crescer.

Fenômeno mal avaliado

A indústria estagnada com demanda fluente implica um fenômeno que está mal avaliado pelos economistas:
é o que Gray Newman, do banco Morgan Stanley, chama de "descompasso do crescimento" (the growth mismatch).
Parte crescente da demanda é suprida por importações.

E isso acontece porque a oferta nacional é insuficiente ou porque não tem preço para barrar os importados. Esse descompasso ajudou a manter a inflação abaixo do teto (6,5%), mas à custa de ampliar os déficits nas contas externas, que, em princípio, deveriam refletir apenas as importações de bens de capital requeridas pelo ciclo de investimentos e não o vazamento da demanda por bens de consumo.

A mudança já em curso, parte por protecionismo (exemplo: aumento do IPI sobre carros importados), terá repercussões sobre a inflação.

PIB vai andar de lado

O BC não costuma avaliar as causas estruturais da inflação, nem a maioria dos economistas que dissecam seus documentos, mais atentos aos sinais da evolução da Selic que ao comportamento da economia.

Lá pelas tantas o RTI diz o que eles querem:
"ao tempestivamente mitigar os efeitos de um ambiente global mais restritivo, ajustes moderados no nível da taxa básica são consistentes com o cenário de convergência da inflação para a meta em 2012".


A dica é clara.

A queda da Selic não será acelerada, segundo a consultoria LCA, e haverá mais três cortes de 0,5%, o juízo do Bradesco, baixando-a para 10,5%.
Faltou esmiuçar porque o BC acena com a convergência da inflação à meta central em 2012 (4,5%), se seus cenários preveem o encontro apenas em 2013. Só se o PIB andar de lado também em 2012.

O que o BC não conta

Ainda que denso, o relatório do BC fala pouco dos riscos contra o que anuncia. Um está à vista a olho nu:
a depreciação do real.

Se o BC não agir, e tem instrumentos para isso, o dólar vai assentar-se no patamar de R$ 1,80/1,90, bom para a exportação, se o mercado externo não encolher pela crise, e ruim para a inflação voltar à meta.

Outro risco é confiar que num ano eleitoral o governo segure o gasto público, que já começará impactado pelo aumento de 14% do salário mínimo.

Sendo assim, a inflação obesa, antes de empecilho, é um meio de o governo fechar o orçamento, já que o PIB murcho vai minguar a receita tributária.


Uma nova CPMF ajudaria a disfarçar a saúde do gasto público.
Mas coisas assim o BC jamais comentaria.

Antônio Machado/Correio Braziliense

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