"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

agosto 14, 2011

POPULISMO E CORRUPÇÃO

A corrupção, tema predominante na política brasileira nos tempos recentes, é um fenômeno mundial e para o ex-deputado e advogado Marcelo Cerqueira nosso país não poderia ser exceção "num mundo aonde vicejam democracias de massa, em número maior do que em qualquer outro tempo".

Ao mesmo tempo, ressalta, a natureza ampliada e avassaladora do capital financeiro, com seus ciclos curtos, a crise como normalidade, a ameaça recessiva, a especulação, "favorece uma espécie de fusão promíscua entre política/administração/justiça e negócios/mercado".

Em crescente número de casos, diz Cerqueira, "a fusão quadros de Estado/executivos financeiros/grande imprensa é algo que não ocorrera dantes de forma tão pronunciada e tão generalizada - o que se passa nos EUA? E na Itália? E no Reino Unido neste exato momento?"

Na análise de Marcelo Cerqueira, nas democracias de massa, "as diferenças partidárias se esvaeceram porque a esquerda se fragilizou ou se tornou muito similar ao centro liberal, quando não à direita conservadora".

Como resultado, a classe política se tornou mais homogênea, executando programas similares, enquanto os partidos se combatem apenas em torno do tema da corrupção.

"Nas democracias de massa modernas é a contraposição de partidos diversos em orientação, com seu papel fiscalizador na oposição, que ajudaria a conter o potencial de corrupção dos governos".

A democracia de massas sempre funciona com base em máquinas políticas, diz Cerqueira citando Weber, e, na ausência de contraditório partidário, degenera em plutocracia.

Também o historiador da USP Boris Fausto, na análise da situação atual em que a ética parece ter sido ultrapassada como prioridade de cidadania pelo consumismo exacerbado, dá relevância às circunstâncias históricas do desenvolvimento do país, como o crescimento avassalador do capitalismo de Estado, fazendo surgir uma nova classe dirigente que mistura o poder sindicalista emergente, dominando os fundos de pensão das estatais, e as megaempresas multinacionais.

E a consequente possibilidade de ganhar muito dinheiro também com a prevalência, a exemplo do que ocorre no mundo globalizado, do sistema financeiro.

Mas Boris Fausto rejeita a ideia de que pessoas mais preparadas cultural e educacionalmente estariam menos sujeitas à corrupção, o que pode resvalar para o elitismo, e temos exemplos diários de pessoas bem colocadas na pirâmide social envolvidas em escândalos.

O que ele ressalta é que, numa democracia de massas como a nossa, o apoio das pessoas pobres ao governo está muito ligada aos benefícios materiais, e a questão da corrupção é quase sempre secundário.

"As pessoas necessitadas não podem se dar ao luxo de rejeitar um esquema político por que é populista ou corrupto. O que me importa se os homens lá estão fazendo isso ou aquilo se agora eu estou andando de avião?", seria o comportamento médio.

O cientista político Bolivar Lamounier, no livro "Difícil Democracia", da coleção Estado da Democracia na América Latina, iniciativa do projeto Plataforma Democrática, que o iFHC conduz em parceria com o Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, chama a atenção para a possibilidade que as tensões da democracia permitem de surgimento de populismo, clientelismo, corrupção e, "não raro, movimentos ou partidos ideologicamente ambíguos a respeito das regras democráticas de representação política".

Um traço fundamental do período pós-transição, para Lamounier, é uma reconfiguração do espectro político-ideológico, "apontando para uma atrofia talvez prolongada do centro liberal e a consequente hipertrofia de setores populistas, picaretas e carbonários".

Na análise de Bolivar Lamounier, findos os regimes militares e restabelecida a democracia, os políticos por "vocação" rarearam, sendo o seu espaço ocupado por aqueles que vivem "da" e não "para" a política.

"Concomitante à debilitação do centro, o afundamento do marxismo e do que restava das ideologias de extrema-direita deixou o campo aberto para um recrudescimento do populismo, um aumento à primeira vista surpreendente do clientelismo (e da corrupção), e o surgimento de um ator novo - a esquerda carbonária".

Definindo o populismo como "uma forma de liderança que recorre à demagogia para obscurecer interesses de classe, amortecendo (mas às vezes exacerbando) reivindicações populares", Lamounier diz que esses líderes, manipulando categorias genéricas como "o povo", "os pobres" ou "a nação", tentam obscurecer ou retardar o amadurecimento da consciência de classe.

Para ele, o espaço de manobra do líder populista "varia no sentido inverso da complexidade econômica e social", ou seja, o avanço do processo de modernização "suscitará mecanismos autocorretivos, mercê dos quais o populismo tornar-se-á inviável ou inofensivo".

Ele chama a atenção para "uma hipótese nova, que merece exame", a de que a sofisticação dos mecanismos políticos e do mercado financeiro no Brasil - em contraste, por exemplo, com a Venezuela -, tem funcionado com eficácia no sentido de inibir o populismo.

"Ao pressentir propensões populistas no governo, o mercado financeiro precifica on-line os impactos que delas possam advir, configurando-se dessa forma um movimento preventivo que é, ao mesmo tempo, uma contínua pressão (antipopulista) no sentido da racionalidade econômica".

Mas Lamounier ressalva que é preciso lembrar que "lideranças populistas podem vicejar mesmo em estágio avançado de modernização", pois a ideia de modernização implica heterogeneidade, "um longo período histórico em que o moderno convive com o arcaico, a riqueza com a miséria, etc.

Em tais condições, grandes agregados sociais pobres, porém mobilizados, continuam a funcionar como estufas de populismo".

Merval Pereira/O Globo

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