"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

maio 16, 2011

"FUNDOS ABUTRES" E O COMÉRCIO DE CRÉDITO PODRE


A Jive Investments Holdings Ltda., uma misteriosa empresa baseada nas Ilhas Virgens Britânicas, foi a compradora do último ativo no Brasil do Lehman Brothers, que quebrou em setembro de 2008.

Por R$ 27 milhões, a Jive comprou do Lehman, no final do ano passado, a Libro Companhia Securitizadora de Créditos Financeiros, que tinha empréstimos, notas e também créditos em atraso, os chamados créditos podres.

Os ativos haviam sido adquiridos anteriormente do ABN AMRO, hoje Santander, e do mineiro BMG. Procurados, os executivos da Jive e da Neointelligence, que assessorou a transação, preferiram não comentar.

O negócio, cujos detalhes não foram divulgados no Brasil, é parte integrante do discreto e crescente mercado brasileiro de compra de créditos podres. Com a explosão do estoque de crédito do sistema financeiro nacional, que passou de R$ 200 bilhões em 2001 para R$ 1,15 trilhão em março deste ano, é natural que os empréstimos em atraso cresçam, embora não necessariamente na mesma proporção.

Em um mundo com juros reais apertados, rendimentos que podem chegar a 20% ou 30% ao ano chamam a atenção. O segredo é comprar barato e recuperar parte da dívida em atraso.

Atraídos por esse tipo de ativo de alto risco e alta rentabilidade novos "fundos abutres" como a Jive estão sobrevoando o país. Alguns dos novos fundos, bancos e empresas de assessoria entrantes são Orey Capital, Brasil Distressed, Deutsche Bank, Gávea Jus, Arion (cujo investidor mais conhecido é o espanhol Enrique Bañuelos), Vision, Banco Fator, Banco Pine - em parceria com a Global Emerging Markets (Gem) -, Roots, Cultinvest, Ícone e Eton Park Capital Management.

Esses investidores vêm disputar os ativos com os mais tradicionais compradores, como a empresa de gestão RCB, os fundos PineBridge e Polo Capital, e os bancos Bank of America Merrill Lynch e Goldman Sachs.

Com Alexandre Camara, o BTG Pactual vem tendo uma atuação cada vez mais ativa nesse mercado, comprando crédito podre de consumo e muito empréstimo consignado, segundo executivos da área.

O Eton Park, um fundo de hedge no exterior fundado pelo ex-Goldman Sachs Eric Mindich, está entre os mais ativos fundos a financiar compradores.

Alguns são especializados em crédito podre de empresas do setor público e precatórios, como o Gávea Jus, uma parceria dos brasileiros da Jus com o Gávea, fundo de Armínio Fraga comprado pelo J.P. Morgan.

Outros focam apenas no crédito de atacado, como o Brasil Distressed, do ex-diretor do Unibanco e do Bank of America Carlos Catraio e do ex-diretor do Bradesco José Guilherme Lembi de Faria.

Outros preferem as pequenas e médias empresas e o crédito de varejo, como o RCB. Comprar participações de capital em empresas quebradas é o que fazem Orey Capital, Arion e o fundo do Banco Pine em conjunto com a GEM, que está sob os cuidados de Gabriel Andrade, executivo tirado da Arsenal Investimentos.

Mas há um empecilho ao desenvolvimento desse mercado: os maiores bancos brasileiros, como o Bradesco, Itaú e Banco do Brasil, até por falta de tradição, não vendem suas carteiras inadimplentes para os investidores. Alguns bancos médios também não.

Principalmente no crédito de varejo, há bancos e investidores que veem alta de preços exagerada nos leilões, uma espécie de bolha de crédito podre no Brasil, o que poderia ser fatal para os investidores. Nem todos concordam.

"Essa conversa de alta de preços do crédito inadimplente é dos compradores que não querem ver novos entrantes disputando esse mercado", diz Salvatore Milanese, sócio responsável pela área de reestruturação da KPMG, que organiza a venda de créditos podres para empresas e bancos.

Um dos grande entusiastas desse mercado do qual depende o seu ganha pão, Milanese estima que o total de crédito podre com atraso de 90 a 360 dias chegue a R$ 150 bilhões. Cerca de 40% disso é crédito ao consumidor.

Ele estima que no ano passado o mercado secundário de crédito em atraso girou R$ 20 bilhões em valor de face e acredita que neste ano o mesmo irá se repetir, considerando-se inclusive o crédito vendido por empresas.

O desconto sobre o valor de face depende da qualidade do crédito, mas costuma superar 50%. Como a maior parte das negociações são feitas entre duas partes - o vendedor e o comprador, com a assessoria de advogados e empresas especializadas -, ninguém sabe ao certo seu tamanho.

"Muita gente conseguiu ganhos de mais de 50% ao ano com crédito inadimplente de varejo após a crise de 2008", diz André Suguita, responsável pela área de "trading" de crédito do Bank of America Merrill Lynch.

"Há investidores entrando agora atraídos por esses ganhos, mas os preços estão ficando elevados demais, inclusive porque a inadimplência está ainda baixa", avalia. "Estão assumindo um risco tremendo", diz.

Os bancos que vendem carteira de crédito inadimplente de varejo, como Santander, Citi e HSBC, geralmente organizam leilões entre vários participantes. "Realmente temos percebido lta de preços nesses leilões", confirma Nuno Correia, responsável pela área de mercado de capitais e soluções de tesouraria do Deutsche.

Ele diz que no fim de 2009, quando o Deustche criou um time com foco no mercado de crédito, passou a comprar também os empréstimos que estavam em atraso.

"Compramos mais crédito de varejo inadimplente, como empréstimos ao consumidor em geral, em toda a América Latina", diz. Ele acredita que, apesar dos preços "um pouco mais elevados", o mercado ainda é bastante "promissor" e há espaço para todos.

"Os casos de inadimplência da última crise de crédito, aquela de 2008, estão ficando maduros agora e os bancos e empresas credoras têm mais disposição para vender", afirma Carlos Catraio, diretor-gerente e sócio da Brasil Distressed, criada no início deste ano. No crédito podre de atacado, seu foco de atuação, Catraio não vê bolha de preços.

A empresa compra créditos de R$ 1 milhão a R$ 2 milhões, na média, podendo chegar a R$ 500 mil. O Goldman Sachs, o BTG Pactual e o Bank of America também compram dívida corporativa inadimplente, mas geralmente em valores maiores, de total de mais de US$ 10 milhões.

Outro novo fundo a entrar no mercado é o Roots, de Rafael Fritsch, filho do ex-secretário de política econômica do ministério da Fazenda Winston Fritsch. Luiz Fernando Rezende, ex-Santander, é sócio do Cultinvest, e Patrick Gontier, ex- Bradesco BBI e ex-Quest, está abrindo a Ícone Investimentos.

Cristiane Perini Lucchesi | Valor Econômico

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