"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

abril 28, 2011

"As leis são como as teias de aranha que apanham os pequenos insetos e são rasgadas pelos grandes." (Sólon) . POIS É, NADA DEMAIS!

A gente não pode querer o padrão japonês, pelo qual o dirigente político ou empresarial se suicida quando é apanhado fazendo alguma coisa muito errada.

A verdade é que nem os japoneses de hoje seguem essa regra.

O comportamento em geral anda mais frouxo.
Mas os nossos políticos inventaram algo radical nessa linha, o "não tem nada de mais".


O senador Requião arranca o gravador das mãos de um repórter porque se sentiu ameaçado pelas perguntas.
O presidente da Casa, José Sarney, explica mais ou menos assim:
pois é, melhor que não tivesse acontecido, mas também não vamos exagerar, o Requião ficou nervoso, é assim mesmo.

Restrição à liberdade de imprensa?
Imagine! Que é isso?
Um assalto com violência física?
Imagine!
Só arrancou um gravador, nem deu um soco, nem nada.

De onde se pode concluir:
se um repórter se irritar com um pronunciamento de Sarney e achar que o senador está incomodando, fica autorizado a arrancar-lhe o microfone.

Violação à imunidade parlamentar?
Imagine!

A pergunta que irritou Requião era sobre sua aposentadoria como ex-governador do Paraná - assunto que também está na categoria "não tem nada de mais".

O sujeito fica no cargo quatro anos ou, vá lá, cansativos oito anos, e leva uma aposentadoria integral.
Nenhum trabalhador comum consegue isso, mas, e daí?

Reparem:
o beneficiado acha que nem precisa justificar a vantagem obtida às custas do dinheiro dos cidadãos. Toma o gravador de quem pergunta e ainda se diz vítima de uma ofensa pessoal.

Passo seguinte, o repórter tenta levar o caso para a Corregedoria do Senado, mas não vai dar.
Sabe o que é, explica Sarney, ainda não deu para nomear o corregedor, então não há quem possa receber a denúncia.


Atenção, portanto, senadores:
o jogo está inteiramente liberado, os senhores e as senhoras podem tomar microfones, agredir fotógrafos, roubar o quanto quiserem, mas, cuidado, tem limite, é só enquanto não tem corregedor.
Isso aqui é sério!


Se ela pode

A chefe da Polícia Rodoviária Federal, Maria Alice, perdeu a carteira de motorista. Estourou o limite de 30 pontos.
E só entregou a carteira depois de notificada e denunciada.


Qual o problema?
Entre outras explicações, disse que o carro em nome dela, e que foi apanhado na série de infrações, é usado por outros membros da família.
Daí o acúmulo de multas.


Ou seja, não tem nada de mais.

Mas, reparem:
estão nos dizendo que a chefe da PRF e mais seus familiares não cumprem as leis do trânsito.
E que, mesmo assim, ela tem condições de chefiar a polícia cuja função é cuidar para que os cidadãos respeitem aquelas regras.


Isso tudo em um país cuja cultura de trânsito reza o seguinte:
você decide se pode passar um sinal vermelho, estacionar em baixo da placa de proibido, parar na fila dupla etc.

O argumento:
não pode, certo, mas, sabe como é, eu estava atrasado, precisava pegar uma encomenda ali mesmo, a criança não pode ficar esperando na porta da escola.

Não tem nada de mais.

Multado?
Denuncie a indústria de multas.
Há um novo excelente argumento:
se a chefe da PRF cometeu mais de 30 pontos...

Se ele pode

O senador Aécio Neves foi apanhado numa blitz no Rio, de madrugada. Sua carteira estava vencida. E os policiais estavam aplicando o bafômetro nos motoristas interceptados.

A assessoria do senador explicou, primeiro, que ele não sabia que a carteira estava vencida.
Ah!, então está tudo bem.
Se ele soubesse que a carteira estava vencida, aí sim, seria grave.


Portanto, se a polícia lhe apanhar com a carteira de outra pessoa, você pode alegar: puxa, seu guarda, não sabia que não era a minha.

Carteira de motorista vale por cinco anos, de modo que é até normal uma pessoa menos organizada não perceber que está vencida.
Mas um senador da República tem que fazer tudo direitinho, não é mesmo? E, apanhado no erro, dizer que não sabia só piora a situação.


E por que não fez o teste do bafômetro?
Não foi necessário, explica sua assessoria, porque o senador contratou um motorista para dirigir o carro a partir daquele momento.


Tudo considerado, e se Maria Alice, ela mesma, a chefe da PRF, apanhá-lo em excesso de velocidade, você explica:

1) não sabia qual era o limite de velocidade;
2) não é mais necessário multar porque você voltou a rodar abaixo do limite;
3) o carro é da família;
4) todo mundo desrespeita a regra, inclusive a senhora sabe quem.

E, se ela insistir na multa, sinta-se ofendido, arranque o talonário e a processe por bullying.
Se ainda assim for multado, peça aos senadores Sarney e Requião um projeto de lei de anistia para reparar essa injustiça.

Não tinha nada de mais.

Carlos Alberto Sardenberg O Globo

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