"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

setembro 15, 2010

ENTRE FRALDAS E FRAUDES .

Quando virei avô, um papel social para o qual eu contribuí apenas indiretamente, pois como sabe o óbvio mais ululante quem faz os netos são os nossos filhos, entendi a força daquilo que chamamos de “graça”.

(...)

Podemos ser fraudes como genitores, mas é impossível fraudar o papel de avô.

Num caso, exige-se muito; noutro, a fraude é substituída pelas fraldas.


Ora, fraudar é mais do que mentir: é criar ilusões, é inventar competências, é encobrir malfeitos com imagens e propaganda enganosa.

Fraldar, porém, diz respeito a fazer o exato oposto.

Trata-se de vestir o infante, dando-lhe aquela primeira tintura de um traço que temos como básico na nossa sociedade:
a diferença essencial entre o sujo e o limpo.

Se as regras forem realmente honradas, as fraudes devem ser punidas; fraldas, entretanto, são jogadas fora.

Mas tanto a fralda quanto a fraude implicam alguma sujeira no sentido popular do termo.

Fraudes remetem a falcatruas e hipocrisias (por exemplo: eu falo que vou fazer isso ou aquilo só para ter votos); fraldas têm tudo a ver com mamadas e banhos que fazem crescer.

Ademais, elas limpam e separam o sujo do limpo.

Entendese, portanto, o ato falho auditivo da candidata Dilma quando, ao ser perguntada sobre “fraldas”, entendeu que era questionada sobre “fraudes”.
Essas mal traçadas sobre o que significa ser avó ou avô, esses papéis nos quais — dizem — o sexo e a sexualidade não têm mais importância, talvez ajudem a compreender a falha da audição de uma candidata tão preocupada em pretender ser o que obviamente não é; que a fralda da avó se confunde com a fraude tão comum na política do partido que ela representa.

Um dia eu escrevi um texto teorizando sobre o “voto amigo”, no qual jus-tificava por que não ia votar motivado ideologicamente, mas por simpatia pessoal.

A nota, que foi recebida furiosamente por uma esquerda que sempre espuma de ódio com os outros, mas vive debaixo de uma ética de condescendência consigo mesma, foi escrita com o intuito de politizar os elos pessoais.

Os laços de amizade e reciprocidade que até hoje nos obrigam a escolher mais pessoas amigas do que representantes dos movimentos sociais como motivos para o voto.

(...)

Afinal de contas, eis o que eu dizia, se exigimos uma politização do mundo, como deixar de fora os amigos, a casa, os parentes e os compadres?

Se a coerência é impossível, não seria o caso de discuti-la e, assim, politizá-la no sentido mais produtivo desta palavra?

Fiquei muito feliz descobrindo que muitos brasileiros geniais, ilustres e sábios, como Caetano Veloso e Oscar Niemeyer, vão votar em amigos.

O arquiteto vai votar em Marco Maciel — um neoliberal que, para muitos, deveria queimar no inferno — porque, diz Niemeyer, “eu o conheço há tempo honestíssimo” — enfatiza.

Haveria algum problema entre o desejo de mudar, permanecendo leal àqueles que “eu conheço”?

A amizade suspende todos os juízos, leis e normas?

Afinal pelos amigos podemos fazer tudo.

E se Judas, Stalin, Fidel, Chávez ou Hitler fossem meus amigos?

Eu acho que é preciso distinguir fraudes e fraldas.

E essa distinção é o projeto mais básico no nosso momento político-eleitoral.

Agencia o Globo/Roberto DaMatta

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