"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

junho 19, 2013

"AUMENTO DE CONSUMO NÃO É REDUÇÃO DE DESIGUALDADE" ! "País não resiste à permanência da desigualdade"

 
A ebulição social a que o país assiste, com a escalada de protestos, reflete, na opinião do cientista político Jorge Almeida, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o preenchimento do vácuo dos movimentos sociais que se burocratizaram desde a chegada do PT ao poder, em 2003.

Para o professor, os distúrbios vêm num momento de aparente tranquilidade, quando, por meio do convencimento e do aumento do poder de consumo - mas não da redução da desigualdade social - o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou pela primeira vez uma situação de hegemonia estável para o grande capital no país.

A aparente "paz de cemitério", no entanto, não teria resistido à permanência da desigualdade. Por outro lado, Almeida lembra que o elemento novo da manifestação é a presença de jovens que, depois de dez anos dos petistas no poder, cresceram sem ter parâmetros de outros governos.

"Talvez esta juventude não esteja mais raciocinando numa base comparativa", afirma.

A seguir, os principais trechos da entrevista ao Valor:
 
Valor:
Qual é o pano de fundo deste movimento?


Jorge Almeida: 
No começo do governo Lula houve um enfraquecimento dos movimentos sociais, não há dúvida. Eles passaram por um processo de moderação, apoiaram o governo e deixaram de mobilizar as suas bases. 

Ao mesmo tempo, o governo Lula representou o fortalecimento da hegemonia do grande capital no Brasil.

Eu uso o conceito de hegemonia de Gramsci, o qual não se trata de uma simples dominação. Requer uma construção de consensos. 


A história do Brasil, desde a Colônia, é marcada por uma dominação muito grande, mas autoritária, que sempre se utilizou da força, mesmo no interregno democrático entre as ditaduras getulista e militar.


Isso mostra uma hegemonia fraca, ou instável, porque a força tem que estar na frente, não o convencimento. A instabilidade dessa hegemonia sempre esteve associada à desigualdade social e aos movimentos sociais e entidades que se opunham a ela, como a UNE, o PT, a CUT, o MST. Estas organizações dificultavam a hegemonia e dois fatos importantes ocorrem no pós-Lula.

Valor:
Quais foram?


Almeida:
O primeiro não é a redução da desigualdade - que não ocorreu - mas o aumento do poder de consumo da população. 


O segundo foram as grandes organizações sociais que eram contestadoras e passaram a defender a ordem social.
Estes dois fatores fizeram com que a hegemonia da ordem burguesa tenha ficado mais estável.


Como a desigualdade continua, vão ter que ser construídas outras organizações, porque estas, mesmo depois de saírem do poder, não serão as mesmas, não terão mais o mesmo caráter de radicalização.
O vácuo está sendo ocupado.

 

Valor:
É uma surpresa?

 

Almeida:
Já existia de uns dois ou três anos para cá um aumento da resistência popular a diversos aspectos de ordem econômica, social, política. 
2012 foi o ano que teve mais greves desde, salvo engano, 1995; em 2012 e 2013 foi quando houve mais conflitos envolvendo povos indígenas; tivemos também a movimentação contra a homofobia e a intolerância religiosa, com manifestações importantes em várias cidades do país; no ano passado, tivemos uma greve geral do funcionalismo e das universidades públicas, com mais de cem dias de duração, que mobilizou não só os professores como os estudantes também.

Tem havido uma série de sinais de que não estávamos vivendo uma paz de cemitério. Os 20 centavos são a ponta do iceberg e por trás dele temos um conjunto insatisfações sociais, políticas e culturais.

Valor:
Que outra insatisfação é relevante?

 

Almeida:
A Copa do Mundo aparece como uma verdadeira intervenção da Fifa nos grandes centros urbanos brasileiros. Há limitação da liberdade de expressão, do comércio, num raio de dois quilômetros nos estádios não pode ter manifestação.


Não pode ter mobilização, não pode venda de produtos que não sejam licenciados pela Fifa; os preços altos dos ingressos, do refrigerante, da água; o superfaturamento das obras; o entendimento claro de que alguns destes estádios vão virar elefantes brancos, como o de Brasília.
A Lei da Copa foi aprovada por quase todos os partidos, no Congresso Nacional.


Parece que todo mundo estava achando que podia fazer o que queria, de forma incólume, sem reação social. Isso coincide com outros elementos da conjuntura econômica e mostra que o Brasil não é uma ilha dentro da crise mundial. A inflação para as camadas de baixa renda atinge 11%, 12%.

Valor:
O que catalisou a insatisfação num movimento nacional?



Almeida:
A violência com que as manifestações foram reprimidas acho que foi um estímulo a uma resposta de dignidade social. Mas, mais cedo ou mais tarde, começaria por outro fato que seria o estopim.


Valor:
Até que ponto há um componente geracional, de uma juventude que quer se manifestar?


Almeida:
A juventude é mais permeável a manifestações de rebeldia e protesto. Não significa que seja a natureza dela. Ou que sempre fará isso numa perspectiva à esquerda, a história já mostrou circunstâncias diferentes. Mas a história mostra que a juventude é que muitas vezes toma a iniciativa.


Talvez o elemento novo agora é que a juventude que tem até 20 anos não pegou o governo FHC. Eles tinham 6, 7 ou 8 anos.


Talvez esta juventude não esteja mais raciocinando numa base comparativa, considerando as melhoras que aconteceram no governo Lula. É possível que não estejam trabalhando com estes parâmetros.

Fazem avaliação a partir do que estão vendo. 


É uma geração que passou a tomar conhecimento da prática política a partir da chegada do PT ao poder. Talvez esteja mais aberta a uma postura crítica em relação ao próprio governo Dilma.


Valor:
O papel das redes sociais da internet é superestimado ou de fato é um fator importantes?


Almeida:
Sem dúvida foi um facilitador.
Da mesma forma que aconteceu em outros países, há uma mudança no que tem sido a prática do ativismo virtual, ou o ciberativismo.
Ele está servindo como um articulador do ativismo público, de rua.

Várias plaquinhas diziam:
"Saímos do Facebook".


O que está ocorrendo é um processo de consciência política.
E as grande entidades estudantis, como a UNE e a Ubes, estão muito burocratizadas, diferentemente dos centros acadêmicos e DCEs.
A UNE tem uma imagem negativa de parte grande dos estudantes, de ser muito burocratizada e governista, chapa-branca.


Cristian Klein | De São Paulo Valor Econômico 

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