"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

dezembro 18, 2012

ENQUANTO NA REPÚBLICA TORPE HÁ QUEM DEFENDA CANALHAS CONDENADOS... UMA "JUSTIÇA" INJUSTA : 52 anos detido por furtar alimentos.

 
Nelson Leopoldo Filho, 77 anos, personifica a prisão perpétua no Brasil. Ele é resumo vivo de um sistema falido que condena, com carimbo oficial, homens e mulheres ao apodrecimento. Preso em 1955, aos 19 anos, por furtar alimentos da geladeira de um vizinho, envelheceu trancafiado por mais de meio século em um leito prisional do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho, no Rio de Janeiro. 
 
É parte de um Brasil medieval, que desconhece direitos fundamentais previstos na própria legislação e transforma manicômios judiciários em eternos depósitos de gente. No segundo dia da série de reportagens sobre a realidade dos loucos infratores no país, a história de Nelson inquieta e indigna.

Não é necessário nem ler os documentos oficiais sobre o paciente para medir o tamanho do absurdo. Basta olhar duas fotografias anexadas ao dossiê: o Nelson jovem de 1955 e o velho com cabelos brancos ao deixar o hospital, 52 anos depois, em 2007, para ser abrigado numa residência terapêutica na cidade de Seropédica, no Rio de Janeiro. 
 
Pouco tempo depois de ser preso, o vizinho dele até tentou retirar a queixa na delegacia. Era tarde. Nelson já havia sido apresentado ao lugar em que passaria praticamente o resto de sua vida. 
 
É história que corta e envergonha. 
 
Ao instaurarem o chamado Incidente de Insanidade Mental, os médicos constataram que ele tinha apenas um retardo mental leve. Por isso, a Justiça determinou que cumprisse um ano de medida de segurança. Nada disso ocorreu.

Só em 1973, um laudo técnico, assinado pelos psiquiatras Paulo Marchon e Talvane Marins de Moraes, atestou que "o paciente Nelson Leopoldo Filho não apresentava mais periculosidade". No mesmo documento, os dois médicos indicam que as condições psíquicas dele "permitem ser transferido para hospital-colônia em zona de regime não penitenciário".

As assinaturas chegaram atrasadas. O tempo havia passado. Nelson já não tinha mais nenhum laço familiar. Não poderia voltar para casa simplesmente porque ela não existia mais. Pior: não havia ninguém para reclamar, para dizer "ele é meu parente." E, sem ter para aonde ir, o lar continuou sendo a prisão. 
 
Durante boa parte do tempo no Heitor Carrilho, era medicado a base de insulina, tratamento arcaico para "acalmar" o paciente. Os prontuários médicos mostram doses e doses.

O coordenador de Saúde do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, Marcos Argolo, reconhece que muitos pacientes são condenados praticamente à prisão perpétua. Relata que o transtorno mental pode ser acentuado em razão do longo período confinado. 
 
"O sujeito passa o resto da vida com pessoas determinando a roupa que ele vai vestir, a hora em que vai comer, o momento de dormir e de acordar. Se seu Nelson sofresse de esquizofrenia, após passar este tempo todo no hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, certamente sua recuperação seria bem mais difícil."

Parceria
Em 2007, após um censo realizado no sistema penitenciário do Rio de Janeiro, constatou-se que um terço daqueles que estavam cumprindo medida de segurança já poderia ser "desinternado". A partir desse diagnóstico, há uma tentativa de se consolidar um sistema em que exista parceria com a rede de saúde mental do Estado.
 
 "O legado que a Lei de Execução Penal deixa, com o cumprimento da medida de segurança no Brasil, aproxima-se a uma prisão perpétua", declara Argolo.

Ele só conseguiu, com o uso da Lei nº. 10.2162, de 2001, que trata de direitos fundamentais dos doentes mentais no país, viabilizar uma residência terapêutica para Nelson em 2007, exatos 52 anos após o paciente conhecer o inferno chamado manicômio judiciário. Responsável pela saúde dos presos do Rio de Janeiro, Argolo traçou um plano para tentar evitar a perpetuação das medidas de segurança. 
 
"Diante desse cenário, pensamos numa ação de inserção dessas pessoas em cumprimento de medidas de segurança na rede de saúde mental do Estado."

As grades foram retiradas do Heitor Carrilho, mas o hospital ainda guarda muitas características de prisão. Muros altos e portão de ferro. Os pacientes permanecem vigiados por agentes penitenciários. A unidade de saúde, agora, abriga apenas os que já cumpriram medida de segurança, mas que perderam os laços familiares. 
 
"A gente tem um hospital (Heitor Carrilho) específico para pacientes "desinternados". Todo um aparato de segurança de um hospital de custódia e tratamento foi desativado e, na verdade, toda a equipe, inclusive o agente penitenciário, trabalha articulado com a rede de saúde mental do Estado e do município", explica Argolo.

A tarefa é difícil. João Pedro Barbosa, 39 anos, está há 18 sem conseguir se libertar do sistema manicomial judiciário do Rio de Janeiro. Depois de passar grande parte da vida entre dois hospitais de custódia e tratamento fluminenses, foi "desinternado" e levado ao Heitor Carrilho. Mesmo com direito a ir e vir, ainda sente-se como um prisioneiro. 
 
A família não o quer de volta. Ele diz que perdeu a alegria de viver.
 
 "Eu penso em trabalhar, mas as coisas não fazem mais sentido. Quero alugar um quartinho para ficar só." João Pedro cumpriu medida de segurança por ter matado a irmã.
 
JOÃO VALADARES Correio Braziliense

Nenhum comentário: