"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

outubro 10, 2012

Decano do Supremo julga ex-companheiro de pensão

Em julho, o estelionatário Sérgio Augusto Coimbra Vial foi preso mais uma vez pela polícia carioca.

Não aproveitou a oportunidade que lhe dera o ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal (STF), que há cinco anos, em habeas corpus do qual se orgulha, anulou sentença que condenara Vial a dez anos de prisão por clonar cartões de crédito.
 
O ministro sustentou que as provas foram obtidas ilegalmente porque os agentes entraram à força no apartamento onde Vial se hospedava, na Zona Sul do Rio, para colher uma máquina de clonagem, chamada de chupa-cabra, sem autorização judicial.

Para chegar à conclusão de que a prova era ilícita por violação de domicílio, protegido pelo artigo 5º da Constituição, Mello se inspirou no conturbado ano de 1968, quando era estudante e morava na Pensão do Abelardo, na Rua Condessa São Joaquim, no Bexiga (SP).

Até hoje, o ministro se lembra da tensão que sofria quando a república era invadida por agentes do Dops atrás de agitadores do movimento estudantil. Se Mello não teve o quarto invadido, embora tenha sido obrigado a permanecer de pé, tenso, até o fim da batida, um vizinho não teve a mesma sorte. José Dirceu, outro hospede de Abelardo, já fazia parte da lista negra da repressão.

O destino voltaria a confrontá-lo com a trajetória de Zé Dirceu. Passados 44 anos, Mello é um dos dez juízes com o poder de levar para a prisão o ex-vizinho, acusado de corrupção ativa e formação de quadrilha. Ele foi um dos responsáveis para que esse julgamento acontecesse, ao votar em 2007 pelo acolhimento da denúncia.

Quatro meses mais velho do que Dirceu, Mello chegou à pensão em 1964 após uma temporada de estudos nos Estados Unidos. De uma família de Tatuí (a 131 quilômetros da capital), mudou-se para São Paulo aos 18 anos e se inscreveu no cursinho Toloza, na Rua São Bento, porque queria entrar para a Faculdade de Direito da USP.

Seu projeto não diferia dos sonhos de Dirceu, que chegara pouco antes, também do interior (a mineira Passa-Quatro), queria estudar Direito e também se abrigara no Abelardo.

Mello, que passaria cinco anos na pensão, descreve o quatro, dividido com outro hóspede, como "um cubículo com dois catres". Dirceu e Mello viviam em alas diferentes e se conheceram nas salas do cursinho Toloza.
O futuro presidente do PT trabalhava como office-boy.

- Naquele mesmo dia, nos encontramos na pensão e conversamos - recorda-se Mello.

As vidas deles seguiriam rumos distintos em 1965, quando Mello ingressou na USP e Dirceu, na PUC-SP.

O futuro ministro priorizava os estudos, e o vizinho de pensão, a carreira de líder estudantil. O calor das ruas logo bateria à porte do Abelardo.
No livro "O que fizemos de nós", que complementa a obra "1968: o ano que não terminou", de Zuenir Ventura, Mello descreveu o trauma causado pelas visitas noturnas dos agentes do Dops.

Mesmo tendo passado ao largo das agitações, ele contou que extraiu uma "dura lição": "Uma Constituição sob uma ordem autocrática não vale absolutamente nada. A polícia e os organismos militares detinham poderes totais sobre os indivíduos".

Em 1969, enquanto Mello diplomava-se, Dirceu ia para o exílio no México, em troca da libertação do embaixador norte-americano Charles Elbrick.

Para Mello, o regime militar representou muito mais do que o conceito abstrato, meramente teórico, estudado nos livros de História e de ciência política:
"Enfrentamos uma época realmente dura, em que pessoas eram arbitrariamente privadas de seus direitos", relatou a Zuenir.

Tal experiência alavancou a vocação de Mello pela preservação dos princípios constitucionais, como o direito a um julgamento justo, valor agora em jogo no julgamento do ex-vizinho dos temos duros do Abelardo. 

O Globo
( Chico Otavio )

Nenhum comentário: