"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

fevereiro 09, 2011

CRISTALEIRAS


Nosso universo social se divide em bens e serviços e, na categoria dos bens, há os móveis e os imóveis.
Os primeiros vão da camisa (que, dizem os sábios, só precisamos de uma unidade para sermos felizes) ao automóvel, a casa e a conta bancária que fala daquilo que permeia - como as orações no mundo religioso e o favorecimento partidário no político - tudo.


Sobram, é claro, os "móveis" que fabricam a paisagem da casa e são o foco ou a imagem central - símbolos como diriam Geertz, Victor Turner ou Lévi-Strauss - do que chamamos de "propriedade privada".

Pois quase sempre começamos nossas vidas de casados comprando os móveis (a cama e a mesa) da casa para depois completarmos o seu interior com poltronas, armários, aparadores, guarda-roupas, criados-mudos e esse objeto impar e, até onde vai minha enorme ignorância e vã e superada antropologia, as cristaleiras.

Eu só tive consciência desse móvel quando fui aos Estados Unidos e verifiquei que os americanos davam mais valor às suas vastas e confortáveis poltronas e estantes do que a esse repositório de "cristais", situado justamente num local de destaque nas salas de jantar ou em outros espaços nobres das residências.
(...)
O fato é que na América sempre tocquevileana não existiam essas um tanto ostensivas cristaleiras feitas de vidro e espelhos, um móvel que lembra uma catedral, uma caixa de joias e os cetins que envelopavam (revelando, contudo) o corpo das mulheres.

Objeto destacado da casa a ser visto, admirado e eventualmente aberto com extremo cuidado para visitantes ilustres ou ocasiões preciosas como aniversários, mortes e casamentos - os grandes ritos de passagem que marcam as nossas vidas.

Dir-se-ia que a vida marcada pelo ascetismo laico calvinista e pela religiosidade cívica rousseauneana bloqueava essas demonstrações ostensivas de coisas preciosas, já que, para eles, o viver para dentro era mais importante do que essa vida cristalizada para os outros (sobretudo para as visitas importantes ou de maior prestígio), como é o nosso caso.

Vi muitas cristaleiras na minha infância e juventude e, quando casei, compramos a nossa, que imitava o móvel dos nossos lares de origem.

Um dia, numa discussão acalorada entre professores mais velhos, ouvi de um deles o seguinte:
"O Fulano procede como um macaco em cristaleira!"

Jamais ouvi definição melhor daquele colega que por qualquer coisa, usava um canhão para matar um passarinho e fazia uma tempestade num copo d"água, numa descalibragem tão recorrente nos sistemas autoritários, de Estado forte, nos quais a cleptomania se legitima em cleptocracia como faz prova hoje em dia a nossa elite política enriquecida e, mais que isso, aristocratizada com o dinheiro dos nossos impostos que segue diretamente não para obras públicas, mas para as suas cristaleiras.
(...)
Como figura situada entre os anjos e os homens, por contraste com as que (sem casa e cristaleira) dialogavam com as forças satânicas que, entretanto, permitiam o teste e demonstravam a existência desse dom complexo chamado de "liberdade" que nos foi dado por Deus na forma do livre arbítrio.

Dom sem o qual faria com que tudo fosse determinado e justificado, tirando o mérito das escolhas e impedindo que o mundo tivesse significado.
Pois o problema não é a cristaleira, mas a inefável transparência que a constitui, deixando ver em dobro tudo o que colocamos dentro dela.

No plano coletivo, sou inclinado a sugerir que a cristaleira de um país é o seu governo e, no seu governo, o seu Parlamento.
A tal transparência tão invocada pelos mais atrasados coronéis que hoje mandam na nossa riqueza, gastando-a com nomeações de partidários e familiares.

Transparência que é, de fato, uma mera palavra de ordem para encobrir os moveis de chumbo de um Brasil sem crítica, sem contraditório político, sem - enfim - igualdade e transparência.

Esse translúcido móvel feito em vidro e espelho que permeava as casas que, como a República e a Democracia, guardava pureza, honra, compaixão e uma honestidade que sumiram da política nacional.

Roberto DaMatta O Globo -

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