"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

janeiro 14, 2010

RESPONSABILIDADE OU CULPA?

“Nenhum homem é uma ilha”, disse Teilhard de Chardin, mas em muitos aspectos parece que continuamos a agir como se fôssemos isolados, cercados cada um por uma bolha individual e indevassável, separados da coletividade, do meio ambiente, da economia, da política, do resto do planeta.
Existe o Universo e existo eu
 
O mundo está aí fora e eu aqui, no meu mundinho privado e separado, com as preocupações que considero só minhas, de mais ninguém. Nesse sentido, sinto-me único, peculiar, autônomo e distinto do resto. Quero soluções para a violência urbana, pois vejo-me na condição de vítima potencial desse flagelo moderno que acentua em mim o medo de sair à rua e limita minha capacidade de interagir com a sociedade e a natureza. Mas a violência está lá, é um dado externo e fora do meu controle, e aparentemente não há nada que eu possa fazer a respeito. Posso facilmente apontar “os culpados”: os políticos que pensam em se locupletar dos recursos públicos e não cuidam da saúde nem das instituições sociais; os traficantes, que invadem a periferia com seus produtos de lucro fácil, as drogas, e lançam desafio ao poder constituído; os filhinhos de papai, alienados e drogados, que financiam a manutenção desse complexo de drogas e violência; a polícia corrupta e mal-remunerada, leniente com a criminalidade; o sistema econômico, injusto e discriminatório, que exclui importante parcela da população dos benefícios da cidadania, lançando-os inevitavelmente ao mundo paralelo da droga, do crime e da violência; a falta de fé e esperança num futuro melhor; e muitos outros.

Nessa lista, não tenho a capacidade de me incluir, de assumir parcela da responsabilidade pelo caos social, de que a violência nas ruas é um dos aspectos mais visíveis.
Levo minha vida honestamente (com algumas mentirinhas bobas, de vez em quando, que não chegam a desmerecer minha imagem diante da sociedade), pago meus impostos (exceto quando a pouca fiscalização permite que eu burle alguma regrinha sem importância e reduza unilateralmente a carga fiscal que me é imposta – aliás excessiva e desmesurada), vou à igreja (certo, de vez em quando, numa missa de sétimo dia ou num casamento), faço caridade (sobretudo perto das festas de fim de ano, o que reduz minha culpa e permite saborear melhor a ceia de Natal), voto com consciência (não me pergunte se acompanho a atuação dos eleitos para me representar), enfim, vivo com a consciência limpa e mantenho atividade social e comunitária. E sofro com os flagelos do mundo, que existem e se agravam a cada dia, apesar de mim.

"Eu, responsável pelo caos do mundo? Era só o que me faltava! Já basta a minha culpa judaico-cristã, que me faz sofrer em solidariedade às chagas e maldades da história, e que nem dez anos de psicanálise conseguiriam aliviar. E agora você quer que eu carregue o mundo nas costas? Assuma responsabilidade pelo caos que os outros, bandidos e picaretas de todo o gênero, criaram? Nem pensar! "

Este raciocínio resulta de um erro de perspectiva. Continuamos considerando que somos seres especiais, à parte, isolados do resto. Recusamo-nos a incluir a nós mesmos nos processos sociais e políticos “lá de fora”. É uma posição confortável, afinal é mais fácil apontar o dedo para os outros, colocar a culpa nos políticos, e seguir a minha vida como vítima dessa situação que não criei e pela qual não assumo qualquer responsabilidade.

Numa perspectiva integrada, no entanto, é imperioso eliminar o véu do narcisismo que nos separa do resto. O resultado é a união a um processo maior, de evolução da consciência coletiva, que ocorre desde que o mundo é mundo, processo do qual não somos observadores nem analistas muito menos vítimas, mas partes integradas e solidárias, responsáveis mesmo pelos desdobramentos que afetam minha casa, meu bairro, minha cidade, minha nação, meu planeta.

Associar-se conscientemente a esse processo coletivo de criação parece ser o desafio do novo milênio, o próximo passo natural na evolução da consciência que é a própria vida. Essa não é uma tarefa fácil nem evidente, mas é cada dia mais necessária. 

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