Condenado no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo crime de corrupção
ativa, acusado de comandar uma sofisticada organização criminosa no
esquema do mensalão, o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu foi líder
estudantil, participou da luta armada, foi preso político, exilado e
viveu dupla identidade na clandestinidade, antes de assumir a
presidência do Partido dos Trabalhadores e levar a legenda à conquista
da Presidência da república, com Lula, em 2002.
Ainda
menino, em Passa Quatro, Minas Gerais, Dirceu já sonhava com um futuro
que iria além dos horizontes da pacata cidade na serra mineira:.
Sozinho, olhando para o céu, vi uma estrela caindo e descobri o que queria: sair dali para conhecer o mundo.
A descoberta da política
Ao
sair da cidade natal, Dirceu, recomendado por um tio, prefeito de uma
cidade do interior de São Paulo, foi trabalhar no escritório político do
então deputado Havolene Júnior. O jovem José Dirceu assistiu ao golpe
militar de 1964 na Praça da República. Não participava do movimento
secundarista, embora já fosse politizado.
Quando vi
aqueles filhinhos de papai, pó-de-arroz, filhos de paulistas
quatrocentões, menininhos do Mackenzie, apoiando o golpe, disse logo: tô
contra.
Amigos de Dirceu daquela época contam que
ele era terrível: compatibilizava a vida de contínuo bem remunerado,
pois trabalhava muito, com a de organizador estudantil e freqüentador da
noite paulista.
Parece mentira, mas o Zé entrava
numa fila de banco para pagar as contas do patrão e já saía com uma
namorada. Andava dez metros e já era assediado - conta um amigo.
A faculdade mudou minha vida. confesa Dirceu. Participei de uma
revolução dos costumes, contra os padrões morais daquela época. Usava
cabelos compridos.
O movimento estudantil, na época,
impulsionava todos os acontecimentos culturais: estava presente na
música popular, no cinema, no teatro.
Apesar de sua liderança no meio
estudantil, Dirceu sempre era do tipo "eu sou eu". Entrou para o PCB e
saiu com a dissidência:
Minha geração sempre foi
anti-stalinista. Todo o meu grupo optou pela luta armada, menos eu. Mas
só fui descobrir isso ao ser preso no Congresso de Ibiúna.
Um
dos presos políticos trocados pelo embaixador americano, Dirceu acabou
se envolvendo diretamente com a luta armada no treinamento em Cuba.
Recebeu a missão de vir para o Brasil.
Durante um ano e meio treinou sua
nova identidade em Cuba: escolheu uma cidade, Guaratinguetá, estudou
tudo sobre ela e decorou o script de sua família fictícia. Aprovado no
curso, assumiu a identidade de Carlos Henrique.
Parentes,
amigos e companheiros pensavam que Dirceu tinha vivido sete anos no
exílio.
Mas ele escondeu que passou parte desse tempo no país, na
clandestinidade, precisamente em Cruzeiro do Oeste, no Paraná, como o
pacato pecuarista e depois empresário Carlos Henrique Gouveia de Melo.
Essa história, por si só insólita, se tornaria ainda mais inusitada
quando ele contou que, nesse período, namorou e se casou com uma linda
jovem da cidade, com quem teve um filho, e que só soube quem ele era
seis anos depois do casamento.
Anistia para Pedro Caroço
Já
estabelecido na cidade, casou-se com Clara Becker, uma jovem
empresária. Dirceu ficou feliz quando recebeu o apelido de Pedro Caroço,
em alusão ao personagem da música de Genival Lacerda que estava de olho
"é na butique dela". Com a anistia de 1979, certo dia, Pedro Caroço
parou o carro em frente a uma das butiques da mulher, pediu que ela
entrasse e começou:
Tenho que contar uma coisa que vai mudar nossas vidas.
Clara ficou estarrecida e preconizou:
Estou perdendo você.
Carlos Henrique voltou para Cuba para poder entrar no Brasil como retornado:
Fiz isso para não revelar que passei esse tempo todo no Brasil, o que
poderia parecer uma bravata. Segundo, para não colocar em risco vidas de
pessoas e, terceiro, porque ninguém tinha certeza de que a democracia
estava vindo para valer.
Em Cuba, Dirceu, que havia
feito uma operação plástica para poder transformar-se em Carlos
Henrique, a desfez para reassumir a identidade verdadeira. Por
segurança, de 1979 até 86 só Clara ficou sabendo que Dirceu havia sido
Carlos Henrique.
Como Carlos Henrique, Dirceu
conviveu com parentes do locutor esportivo Osmar Santos. Na campanha das
diretas, em 84, trabalhando com Osmar, Dirceu ficava horas falando da
vida do locutor, que ficava intrigado.
Dois anos depois é que Osmar
soube que o petista havia sido o famoso Pedro Caroço. E se vingava todas
as vezes que o time de Dirceu, o Corinthians, estava perdendo:
Olha aí, Pedro Caroço, o seu time está perdendo. Em que lugar do Brasil você deve estar agora?
Hoje,
Dirceu está no quarto casamento. Entre a separação de Clara, em 81, e a
atual união com Evanise Santos, ele se casou com a portuguesa Ângela
Saragossa, com quem teve uma filha, Joana e com Maria Rita. Dirceu
também tem outra filha, Camila, de outro relacionamento.
De sua
identidade de Carlos Henrique ficou uma das mais gratas recordações de
vida: o filho Zeca, que já exerce atividade política e administrativa na
cidade. Zeca tem uma filha, Camila.
Do Planalto à planície
Já
no PT, construiu com Lula, que vinha do movimento sindical, uma
parceria com base mais na complementaridade do que nas afinidades
pessoais. Segundo ex-companheiros, um tinha o carisma popular, outro a
capacidade de planejamento e disciplina.
Enquanto
suas consultorias privadas pós-governo renderam denúncias de tráfico de
influência, a forma como saiu da Câmara sem renunciar, como outros
acusados de participar do mensalão, foi cassado e perdeu o direito de
concorrer até 2015 e seus discursos para a militância lhe renderam a
imagem de um mártir para muitos no partido.
Até
Lula pediu que ele renunciasse (ao mandato), mas pesou para ele a visão
de que, enfrentando o processo de cassação até o fim, faria o que a
militância esperava dele disse um amigo.
Sete anos
depois de deixar o Planalto, Dirceu mantém influência no governo, no
partido e a adoração de militantes sentimento que parece só ter
crescido após a crise do mensalão, que o tirou do poder.
Afastado
oficialmente dos palcos da política desde 2005, quando deixou a Casa
Civil e teve seu mandato de deputado cassado em meio à crise do
escândalo da compra de votos, Dirceu nunca se distanciou da articulação
política, nem deixou de exercer seu papel de liderança no PT.
As
razões da manutenção do seu poder e influência enquanto outros nomes
históricos do partido se afastaram, está, segundo pessoas próximas e até
mesmo desafetos, na obstinação e disciplina do ex-guerrilheiro.
O trabalho, a competência, a liderança de Dirceu foram a base da
aliança que elegeu Lula. No governo, sua capacidade de trabalho e visão
política fizeram dele um 'primeiro-ministro de fato'... Era o candidato
natural à sucessão de Lula, daí esta denúncia contra ele afirma o amigo
e advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, para quem nada se
apurou contra Dirceu ao longo do processo.
Se tem
amigos fiéis e admiradores no PT e na esquerda, Dirceu também acumulou
ao longo dos anos inimigos no partido e entre siglas aliadas. Um deles, o
ex-deputado petebista Roberto Jefferson, delatou o mensalão e foi o
responsável por colocar Dirceu no centro das denúncias, que começaram a
ser julgadas em agosto em um julgamento sem previsão de acabar.
Na
ação penal do mensalão, o maior processo da história do STF, Dirceu
voltou aos holofotes como principal dos 37 réus do julgamento segundo o
Ministério Público Federal, o ex-ministro foi quem montou o esquema de
compra de apoio político ao governo Lula no Congresso.
Por ironia, foi o Dirceu, na Casa Civil, quem teve a tarefa de procurar
os dois primeiros indicados de Lula ao STF, Ayres Britto e Joaquim
Barbosa lembra outra pessoa que conviveu com o petista no governo.
Em meio ao turbilhão que pode levá-lo à prisão, Dirceu não deixou de se dedicar aos problemas políticos de seu partido.
Em
um artigo em seu blog no início de setembro, enquanto o PT atacava o
líder nas pesquisas em São Paulo, Celso Russomanno (PRB), Dirceu afirmou
que Russomanno era tarefa apenas para o segundo turno e o foco naquele
momento para o PT precisava ser atacar o tucano José Serra para garantir
a vaga na segunda fase da corrida eleitoral.
Esta
capacidade de análise, de ver a política tanto de cima quanto com lente
de aumento, sempre fez de Dirceu uma liderança essencial disse outro
aliado que integrou o primeiro escalão na mesma época em que Dirceu
ocupou a Casa Civil.
Mesmo longe do Planalto, não
deixou de lado as atividades políticas. "Nunca saí daqui", disse ele ao
final de 2010 em um evento no Planalto, ao ser perguntado por
jornalistas como era estar de volta ao local.
Uma
prova disso foram as articulações, entre 2009 e 2010, para costurar as
alianças regionais que ajudariam na vitória de sua substituta na Casa
Civil, Dilma Rousseff, na eleição presidencial. Em poucos meses, viajou
por quase todos os Estados do país, foi recebido por governadores e
lideranças aliadas e de oposição.
Continuou a utilizar o conhecimento de quem, entre 1995 e 2002, dirigiu o PT com o único foco de levar o partido ao Planalto.
Ele dizimou as esquerdas mais radicais do partido, escolheu novas
lideranças, reforçou tendências moderadas para unificar um partido que
até então era um ajuntamento de forças individuais afirma um integrante
de um partido aliado.
O Globo
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